Onconews - COVID-19, a racionalização dos atendimentos e os dilemas médicos

carolina cardio bxA cardiologista Carolina Carvalho Silva (foto), médica do Departamento de Cardio-Oncologia do ICESP e supervisora do Programa de Especialização em Cardio-Oncologia do Instituto do Coração (InCor), analisa artigo publicado na JACC CardioOncology que discute mudanças na rotina de monitoramento cardiovascular de pacientes e sobreviventes de câncer durante a pandemia da COVID-19.

Por Carolina Carvalho Silva, cardiologista do Departamento de Cardio-Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e supervisora do Programa de Especialização em Cardio-Oncologia do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP

A pandemia da COVID-19 tem sobrecarregado os sistemas de saúde globalmente. Uma vez que os pacientes com câncer e doença cardiovascular possuem maiores riscos de infecção e de complicações relacionadas à COVID-19, a rotina de exames de monitoramento cardiovascular durante o tratamento oncológico tem sido rediscutida. No entanto, a avaliação risco x benefício neste contexto traz dilemas não apenas técnicos, mas também éticos, de forma que recomendações e posicionamentos podem auxiliar o dia-a-dia dos profissionais que lidam com estes doentes.

Nesta publicação, Calvillo-Arguelles1, membro do grupo de cardio-oncologia da Universidade de Toronto, Canadá, liderado por Paaladinesh Thavendiranathan,, um dos maiores expoentes da imagem cardiovascular em cardio-oncologia do mundo, procura organizar recomendações para auxiliar a tomada de decisão neste cenário. A participação de outros nomes "de peso" faz desta recomendação (que foi chamada de "ponto de vista" pelos autores) um documento que embora não seja baseado em evidências científicas robustas, possui grande alcance e credibilidade.

Recomendações de monitoramento cardiovascular  

Embora o monitoramento cardiológico por métodos de imagem seja um dos pilares da prática da cardio-oncologia, os autores reconhecem que:

1. as recomendações disponíveis são baseadas em consenso de especialistas;

2. em pacientes assintomáticos, estes protocolos resultam na detecção de um pequeno volume de alterações significativas e/ou modificadoras de conduta clínica.

Com base nestas premissas, os autores reuniram propostas de medidas temporárias de racionalização dos exames de imagem cardiovascular durante a pandemia da COVID-19, publicados no artigo em discussão, de Calvillo-Arguelles, et al.

Esta proposta teve como foco o monitoramento de pacientes em uso de antraciclinas e trastuzumabe, uma vez que não há diretrizes bem estabelecidas referentes a outras drogas cardiotóxicas. Os autores reforçam o fato de que este "ponto de vista" não constitui diretriz de sociedades médicas, e pode sofrer modificações com o decorrer da pandemia.

Avaliação de risco pré-tratamento

Antraciclinas

- Recomendação padrão: realizar exame de imagem pré-tratamento em candidatos a antraciclinas1

- Proposta: limitar os exames aos pacientes de maior risco, definidos como: 1. doença cardiovascular prévia estabelecida ou suspeita; 2. sinais e sintomas de insuficiência cardíaca; 3. dois ou mais dos seguintes fatores de risco para cardiotoxicidade: idade ≥ 60 anos, hipertensão, diabetes, dislipidemia, tabagismo, obesidade. Para os demais pacientes, recomenda-se controle dos fatores de risco, postergando o exame de imagem para após o término das restrições associadas `a pandemia.

- Racional: na ausência de fatores de risco ou sintomas, a probabilidade de detecção de anormalidades no exame de imagem pré-tratamento é baixa.

Trastuzumabe

- Recomendação padrão: realizar exame de imagem pré-tratamento em candidatos a trastuzumabe

- Proposta: limitar os exames aos pacientes com: 1. doença cardiovascular prévia estabelecida ou suspeita; 2. sinais e sintomas de insuficiência cardíaca; 3. dois ou mais dos seguintes fatores de risco para cardiotoxicidade: idade ≥ 60 anos, hipertensão, diabetes, dislipidemia, tabagismo, obesidade; 4. exposição a antraciclinas como parte do tratamento atual ou prévio. No entanto, para pacientes com um exame de imagem normal dentro dos últimos 6 meses, na ausência de doença valvar, exames adicionais podem ser postergados.

- Racional: a cardiotoxicidade por trastuzumabe em geral apresenta curso clínico favorável, e possui baixa incidência na ausência de exposição prévia a antraciclinas.

Monitoramento durante o tratamento

Antraciclinas

- Recomendação padrão: ainda não é bem definida. Segundo a ASCO, a frequência deve ser individualizada conforme fatores de risco cardiovasculares, fatores de risco relacionados ao tratamento e julgamento clínico2. Segundo a ESMO, deve-se repetir os exames de imagem após se exceder 250 mg/m2 de doxorrubicina ou equivalente, e deste momento em diante, repetir a cada 100 mg/m2 (ou equivalente)3.

- Proposta: postergar exames precoces de imagem para monitoramento, exceto nos casos em que haja potencial para impacto nas decisões clínicas, definidas como: sinais e sintomas de insuficiência cardíaca; pacientes portadores de doença cardiovascular prévia ou alta carga de fatores de risco cardiovasculares que já receberam doses de antraciclinas ≥ 250 mg/m2 (ou equivalente) com necessidade de doses adicionais doses de antraciclinas; pacientes que receberam ≥ 400 mg/m2 de doxorrubicina (ou equivalente) com necessidade de doses adicionais.

- Racional: estudo recente com 865 pacientes4 demonstrou que as ocorrências de cardiotoxicidade por antraciclina na forma grave (definida como FE < 40% ou sintomas) é baixa (cerca 3% dos casos), e que as formas leve ou moderada não estão associadas a mortalidade. Além disso, como a disfunção ventricular raramente se manifesta antes do período de 3-6 meses após o término do tratamento5,6, adiar os exames de imagem não traria prejuízos a curto prazo.

Trastuzumabe

- Recomendação padrão: o tratamento com trastuzumabe é o cenário aonde mais se recomenda a repetição periódica dos exames de imagem cardiológicos. A bula do trastuzumabe e a ESMO recomendam que os exames sejam repetidos a cada 3 meses durante o tratamento3.

- Proposta: em pacientes sem fatores de risco cardiovasculares e tratadas com regimes sem antraciclinas, realizar exames em 6 e 12 meses. Em pacientes com fatores de risco para cardiotoxicidade (exposição prévia a antraciclina, idade ≥ 60 anos, hipertensão, diabetes, dislipidemia, tabagismo, obesidade) e com FEVE previamente normal, realizar imagem em 3, 6 e 12 meses. Para pacientes com FE limítrofe (FE 50-55%), FE reduzida (< 50%), doença cardiovascular prévia ou sinais e sintomas cardiovasculares, deve ser mantida a recomendação padrão (exames trimestrais).

- Pacientes metastáticos HER2+: esta é uma indicação específica de uso prolongado de trastuzumabe (> 1 ano; frequentemente, mantido por tempo indeterminado, até progressão de doença). Frente ao dado de que o pico da incidência de cardiotoxicidade neste grupo é entre 8 e 11 meses7, a proposta apresentada é de repetir exames em 6 e 12 meses para os pacientes assintomáticos. Diante de exames normais, após 12 meses, sugere-se que os demais exames sejam postergados para após o término das restrições da pandemia de COVID-19. Vale lembrar que o monitoramento de rotina de pacientes metastáticos assintomáticos é controverso, uma vez que implica em risco de suspensão de terapia em pacientes com boa perspectiva de resposta e sem opções oncológicas com eficácia comparável.

- Racional: a maioria dos exames realizados durante o tratamento não resulta em mudanças no tratamento dos pacientes8.

Acompanhamento de sobreviventes após o término do tratamento

Antraciclinas

- Recomendação padrão: não há recomendação consensual para seguimento dos sobrevientes de neoplasias na meia idade ou nos idosos. A recomendação de seguimento contempla sobreviventes de neoplasias da infância, adolescência e fase adulta jovem, e sua frequência se baseia em caraterísticas do paciente e do tratamento ao qual foi exposto.

- Proposta: adiar o monitoramento dos sobreviventes durante a pandemia.

- Racional: Trata-se de acompanhamento de longo prazo e que visa a detecção de alterações tardias.

Trastuzumabe

- não existem recomendações específicas

O papel das recomendações baseadas em consensos de especialistas

Embora o manuscrito tenha sido assinado por personalidades renomadas e contenha recomendações com bom racional técnico e boa aplicabilidade frente aos desafios trazidos pela COVID-19, faz-se necessária a discussão acerca da pertinência dos consensos de especialistas. Arduamente criticados por alguns, de fato, os consensos de especialistas não possuem valor em áreas com evidências científicas robustas para a criação de diretrizes de sociedades. No entanto, em áreas que carecem de evidências (como a cardio-oncologia), os consensos de especialistas podem ser ferramentas úteis para a tomada de decisão clínica, desde que alguns requisitos sejam atendidos: 1. experiência acadêmica e técnica dos autores; 2. plausibilidade e coerência das recomendações; 3. embasamento mínimo em literatura (mesmo que por vezes "extrapolada" de outros cenários); 4. clareza ao informar a escassez de evidências que embasou o documento, bem como ao informar o leitor de que o consenso não substitui as diretrizes de sociedades; 5. reconhecimento por parte do leitor de que opiniões de especialistas não possuem o mesmo peso de recomendação de diretrizes; ainda, que as primeiras devem ser interpretadas de modo a oferecer o melhor tratamento disponível que se adapte a cada paciente.

Conclusões

Os autores concluem que modificações temporárias na rotina de monitoramento cardiológico de pacientes assintomáticos durante a pandemia da COVID-19 são viáveis, e prudentemente, reforçam que estas devem ser discutidas entre o oncologista, o cardiologista e o paciente. Foi destacada a necessidade do monitoramento rigoroso dos sintomas, do controle dos fatores de risco cardiovasculares e do controle das comorbidades associadas, o que parece ser significativamente mais benéfico para os pacientes do que a rotina de monitoramento cardiológico.

Referências: 

1. Calvillo-Argüelles O, Abdel-Qadir H, Ky B, Liu JE, Lopez-Mattei JC, Amir E, Thavendiranathan P, Modified Routine Cardiac Imaging Surveillance of Adult Cancer Patients and Survivors during the COVID-19 Pandemic, JACC CardioOncology (2020), doi: https://doi.org/10.1016/ j.jaccao.2020.04.001.

2. Armenian SH, Lacchetti C, Barac A et al. Prevention and Monitoring of Cardiac Dysfunction in Survivors of Adult Cancers: American Society of Clinical Oncology Clinical Practice Guideline. J Clin Oncol 2017;35:893-911.

3. Curigliano G, Lenihan D, Fradley M et al. Management of cardiac disease in cancer patients throughout oncological treatment: ESMO consensus recommendations. Ann Oncol 2020;31:171-190.

4. Lopez-Sendon J, Alvarez-Ortega C, Zamora Aunon P et al. Classification, prevalence, and outcomes of anticancer therapy-induced cardiotoxicity: the CARDIOTOX registry. European heart journal 2020. [E-pub ahead of print], https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehaa006.

5. Cardinale D, Colombo A, Bacchiani G et al. Early detection of anthracycline cardiotoxicity and improvement with heart failure therapy. Circulation 2015;131:1981-8.

6. Narayan HK, Finkelman B, French B et al. Detailed Echocardiographic Phenotyping in Breast Cancer Patients: Associations With Ejection Fraction Decline, Recovery, and Heart Failure Symptoms Over 3 Years of Follow-Up. Circulation 2017;135:1397-1412.

7. Calvillo-Arguelles O, Abdel-Qadir H, Suntheralingam S, Michalowska M, Amir E, Thavendiranathan P. Trastuzumab-Related Cardiotoxicity and Cardiac Care in Patients With HER2 Positive Metastatic Breast Cancer. Am J Cardiol 2020;125:1270-1275.

8. Bobrowski D, Suntheralingam S, Calvillo-Arguelles O et al. The yield of routine cardiac imaging in breast cancer patients receiving trastuzumab-based treatment: a retrospective cohort study. Can J Cardiol 2019. [E-pub ahead of print]