Onconews - A hora da virada

felipecoimbra_NET_OK.jpgTemas complexos estão na agenda da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO). Nesta entrevista, o que pensa o paraense Felipe José Fernandez Coimbra, diretor do núcleo de cirurgia abdominal do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, e presidente da SBCO sobre o cenário brasileiro da cancerologia cirúrgica.

Onconews: Temos indicadores que mostram resultados da cirurgia oncológica versus cirurgia geral quando se comparam, por exemplo, as taxas de recidiva ou mortalidade pós-operatória?
No Brasil não temos esses dados. O que temos de evidência científica publicada em revista de alto impacto é que nas cirurgias de alta complexidade em oncologia os resultados são melhores em grupos especializados. Isso vale em cirurgias para esôfago, pâncreas e, principalmente, em cirurgias de maior porte, como em pulmão, por exemplo. As evidências têm demonstrando que grupos treinados nos princípios da cirurgia oncológica e que realizam o maior número de cirurgias têm menos complicação, menos mortalidade e melhor resultado de sobrevida. Em alguns países, como já acontece nos Estados Unidos, planos e operadoras de saúde querem utilizar esses dados publicados pelas instituições para direcionar pacientes e negociar custos. Isso diminui o custo do tratamento como um todo, não só em uma internação, mas ao longo de toda a vida do paciente. É tendência. No Brasil, começa a se falar no assunto. Ouvimos dizer que o governo estava interessado em renegociar valores a partir de resultados que o hospital apresente. O problema é que muitas instituições não apresentam dados. Em câncer gástrico, por exemplo, eu tenho publicações de resultados, metástases, sobrevida, taxa de complicação da cirurgia, mas eu não tenho como comparar isso com o resultado de saúde pública, porque esse dado simplesmente não existe.

E os comparativos internacionais?
Vou dar um exemplo. Existe uma pesquisa do American College of Surgery para avaliar algumas cirurgias de alta complexidade. Vamos considerar os casos de pâncreas. Eles avaliam mais ou menos 30 instituições americanas, junto com a AHPBA (American Hepato-Pancreato-Biliary Association). O objetivo da ACS é avaliar dados de complicação e mortalidade da cirurgia pancreática. E a oscilação de complicações impressiona, porque a taxa de complicação sobre o mesmo procedimento vai de 20% a 60%, a depender do hospital. Uma série de fatores explica esse quadro. No Brasil, o esperado é que realmente se possa aferir também uma grande variação. Existem hospitais que são mais dedicados a um assunto específico, outros menos. Na verdade, não somente hospitais, mas às vezes grupos de cirurgiões que podem trabalhar em mais de um hospital, dedicados a um assunto especifico. Eles têm uma experiência e um resultado melhor. Existem publicações mostrando isso claramente.

Estudo apresentado na última ESMO mostra que mais de 75% dos pacientes de câncer não têm acesso à cirurgia. Existe uma desvalorização global da cirurgia no tratamento do câncer?
Existe sim, isso é verdade. Muitas vezes a gente não percebe porque está numa região de maior concentração econômica, em um sistema de saúde um pouco mais organizado. Mas quando olha os números, enxerga que isso é verdade no mundo inteiro. No Brasil, por exemplo, vamos falar das metástases hepáticas. Sabemos que 50% dos pacientes com tumor colorretal vão evoluir com metástases hepáticas. E que desse universo, de 20% a 30%, pelo menos, podem ser operados para retirar esse tumor secundário. Se a gente fizer uma estimativa livre, pelo número de casos de câncer colorretal no Brasil, em torno de 35 mil casos, cerca de 15 mil pessoas por ano têm a metástase. Teríamos por baixo 4 mil cirurgias de hepatectomia para metástase hepática e sabemos que no Brasil não acontece nem metade disso. Poucos são os grupos que fazem esse tipo de cirurgia e não conhecemos os números desses grupos. Nós provavelmente estamos entre os serviços que mais fazem esse tipo de cirurgia – e fazemos em torno de 100 por ano. Não existem nem 30 grupos no Brasil com esse número. Outro exemplo: uma publicação americana mostra que para câncer de pâncreas em estágio inicial, mais da metade dos pacientes não são submetidos à cirurgia. Fazem tratamento exclusivamente clínico. E esse trabalho europeu, apresentado agora na ESMO, reflete isso. Na verdade, ele escancara essa situação. É papel social dos cirurgiões e das sociedades mostrar que o câncer tem chance de cura, que a cirurgia, quando bem indicada, é um fator fundamental para os pacientes. Todo paciente com câncer deveria ser submetido à avaliação de um cirurgião oncológico pelo menos uma vez no curso do tratamento. O que acontece muito frequentemente, e a gente vê isso no dia a dia claramente, é valorizar a quimioterapia. O paciente com metástase hepática tratando só com quimioterapia. E ele trata seis meses, um ano, um ano e meio, até que não tem mais um esquema quimioterápico eficaz e a doença começa a progredir. Aí ele é encaminhado para o cirurgião para ver se dá tempo ainda de fazer alguma coisa. E a gente sabe que essa situação já não é a ideal. O paciente já tem hepatopatia pela químio, muitas vezes a progressão é irressecável, mas é a realidade do nosso dia a dia. 

Essa ênfase no tratamento sistêmico não encarece o tratamento para o sistema de saúde?
Com certeza. Quando a gente vê os gastos com saúde pública no Brasil, eu não lembro agora exatamente, mas existe esse número do Ministério da Saúde, indicando que cerca de 60% a 70% dos recursos são encaminhados para tratamento clínico. Veja que o tratamento clínico é paliativo. A prevenção e o tratamento cirúrgico, que são as únicas possibilidades de cura, têm o menor investimento em saúde na área de oncologia. Já é hora de inverter essa lógica.

Como as sociedades médicas podem ajudar e tentar mudar esse cenário?
Acho que esse é um problema de informação, é um problema cultural. Precisamos pegar esses dados que estão ali e ninguém acessa, ninguém tem conhecimento. Precisamos mostrar esses dados e destrinchar a informação que está ali. Quais são os tratamentos que têm maior chance de curar o paciente, com menos investimento. No meu ponto de vista, o governo ou os administradores da área de saúde não lideram esse processo. Eles vão pelo andamento do mercado. O medicamento vai surgindo, cada vez mais caro, e será que aquela estrutura está pronta para selecionar, direcionar o que é melhor e realmente educar toda a população e toda a classe médica no sentido de valorizar prevenção e tratamento curativo?  Vocês têm tido um papel fundamental nisso. Publicam um texto simples, mostrando esses dados epidemiológicos, esses dados de acesso à cirurgia e de custos de saúde. Essa é uma informação fundamental que vocês divulgam. Talvez seja até uma surpresa para muito médico, muito oncologista.

Melhorou a assistência para o paciente de câncer nesses 10 anos, desde o marco legal do Programa Nacional de Atenção Oncológica?  
O acesso ao tratamento do câncer na sua melhor qualidade é limitado, ainda existem muito trabalho para chegar amplamente nos pacientes no país inteiro. Precisamos caminhar muito ainda nesse sentido. Se pensarmos no Sistema Único de Saúde, os pacientes ainda têm muita dificuldade de acesso, e não só no câncer. Por exemplo, o paciente que tem um câncer de pulmão. Ele vai passar em um primeiro atendimento, dar andamento até chegar num oncologista para fazer o tratamento específico e muitas vezes esse processo demora mais de seis meses, senão muito mais que isso, dependendo da região do país. O Sistema Público de Saúde ainda tem muito para avançar.

A SBCO já fez críticas à falta de cirurgiões oncológicos em UNACONs e CACONs, o que implica que procedimentos cirúrgicos oncológicos sejam feitos muitas vezes por cirurgiões gerais. Essa crítica ainda é válida? Qual o cenário atual?
São centros especializados em oncologia, precisam realmente ter a presença de um especialista. Não é que só pode trabalhar nos centros quem é oncologista. Muito pelo contrário. O que é preciso é a liderança, ou pelo menos a presença, de um oncologista clínico e um oncologista cirurgião. Ele não precisa ser o diretor, mas precisa ter pelo menos um oncologista presente. Isso é importante. A grande questão é que eu acho que isso ainda não acontece completamente, em todas as unidades. Não sabemos dizer a porcentagem dos UNACONs e CACONs que tenham pelo menos um cirurgião oncológico. Muitas vezes ouvimos críticas de que nossa posição seria uma reserva de mercado. Não é. Isso vale para qualquer especialidade. Não tem cabimento uma clínica de obstetrícia não ter um obstetra de formação. Ou um setor de quimioterapia só ter outras especialidades afins e não ter um oncologista clínico.

Como otimizar a assistência oncológica na rede de UNACONs e CACONs?
O cirurgião oncológico tem por formação esse conhecimento do tratamento de diversos tipos de câncer. Ele é fundamental, assim como o oncologista clínico, o radioterapeuta. É importante ter uma equipe multidisciplinar especializada no tratamento do câncer. Vale ressaltar que não precisa ser só cirurgião oncológico para trabalhar em uma instituição como essa até porque quem trata câncer não é só o cirurgião oncológico. Mas esse é um ponto fundamental. É preciso promover eventos de atualização, eventos científicos para o cirurgião oncológico e os não-cirurgiões oncológicos, e dentro do possível participar de projetos de saúde pública junto com os governos federal, estadual e local. Outro fator importante é promover informação para os leigos, para o paciente. Como lideranças no tratamento do câncer, precisamos informar cada vez mais a população, que precisa estar atenta à prevenção e identificação de sintomas para o diagnóstico cada vez mais precoce.

Que recomendações a SBCO gostaria de deixar para otimizar a assistência oncológica tendo em vista a Lei dos 60 dias?
O tempo de espera na realização de exames, na marcação de uma consulta, pode levar sim, em situações de demora maior, a uma progressão da doença, mudança de estadiamento e até a perda de chance de cura. Por isso a Lei dos 60 dias é importante, pois tenta fazer com que o atendimento ao paciente com câncer seja o mais rápido possível. Isso acabou forçando alguns hospitais, algumas instituições a tentar organizar de uma forma mais ágil desde a chegada do paciente até o início do seu tratamento. Agora, há críticas à forma como a lei foi implantada. Não é simplesmente uma lei, uma canetada, que vai melhorar o atendimento do câncer no Brasil. Não é bem assim. O certo seria organizar toda a estrutura de forma que permita realmente que isso aconteça, e não simplesmente jogar a responsabilidade nas instituições. Acho que tem seu aspecto positivo, mas a forma como foi implantada realmente não foi a ideal.   

Perfil
Felipe José Fernandez Coimbra é oncocirurgião, Diretor do Núcleo de Cirurgia Abdominal do A.C.Camargo Canter Center, em São Paulo, e presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica no biênio 2016/2017.