Nesta entrevista Otávio Clark, da Evidências - Kantar Health, fala do panorama regulatório brasileiro e das desigualdades no acesso ao tratamento oncológico. Ele destaca que mesmo diante de tantos paradoxos, a saúde brasileira continua a atrair os olhares internacionais.
{jathumbnail off} Onconews: A oncologia mantém polêmicas intermináveis, tanto para o registro quanto para a incorporação de novas drogas nos sistemas de saúde, e agora coloca em perspectiva os cânceres raros. Que novos desfechos se anunciam e o que esperar desse debate?
Otávio Clark: Hoje temos uma falta de clareza muito grande sobre quais são os desfechos realmente válidos para efeito de registro e incorporação, tanto no sistema público, quanto na saúde privada. Na maior parte dos estudos clínicos atuais, o endpoint primário é sempre o tempo livre de progressão da doença e existem razões técnicas e éticas para isso. Raramente você vê sobrevida global como desfecho primário. Existem conceitos mais ou menos homogêneos entre as agências internacionais para o registro de um produto e o que acontece aqui é o desconhecimento sobre o que é um desfecho primário e como fazer a validação desses desfechos intermediários. Não há um debate profundo em torno dessa questão. Preferem insistir no argumento de que não existe ganho de sobrevida, mas ninguém questiona se, através da magnitude do efeito ou da validação do surrogate, a sobrevida livre de progressão da doença seria um efeito válido. No caso dos cânceres raros, por exemplo, vamos ver diversos desfechos novos daqui para frente. Já começamos a ter estudos com endpoints de resposta molecular, que é extremamente sofisticada, mas aqui no Brasil você ainda não vê nenhuma normativa sobre isso.
Como você vê o novo modelo anunciado no panorama regulatório da Anvisa?
Vejo com esperança e ceticismo. Precisamos entender melhor o que está sendo feito, a norma precisa de aperfeiçoamentos e já existe uma força-tarefa concentrada nisso. Mas tivemos avanços. Finalmente, a Anvisa publicou uma normativa prevendo que estudos de fase II também podem embasar o registro de medicamentos no Brasil, o que é um grande avanço, mas a verdade é que ainda precisamos andar muito. Em 2013, quando analisamos a posição da Anvisa sobre o registro de algumas drogas, numa iniciativa da Interfarma, constatamos que havia falhas de interpretação de dados por parte do corpo técnico da Anvisa. Queria achar uma palavra melhor, mas o fato é que eram falhas grosseiras. Participamos de um seminário da Interfarma em Brasília e mostramos publicamente que havia um desconhecimento em várias análises da Anvisa sobre o conceito de mediana, que é uma análise estatística básica. Isso, infelizmente, nós vimos acontecer por falta de conhecimento de metodologia científica.
Uma contribuição para a Anvisa seria formar um grupo de estudos sobre metodologias?
É por aí. Desse simpósio, surgiu a ideia de produzir um guia metodológico sobre questões como essas, de endpoints, de avaliação regulatória, e participamos desse projeto, que teve a contribuição de vários grandes nomes da oncologia e da oncohematologia brasileira. O guia foi feito e entregue à agência reguladora. Recebemos um agradecimento e só. No entanto, acho que isso pode ter tido alguma influência, por exemplo, na decisão de considerar agora os estudos de fase II para o registro de medicamentos.
E o descompasso entre a saúde pública e privada, como reduzir as iniquidades no acesso?
Vivemos um ambiente de loucura regulatória. O everolimo é um caso ícone. É uma droga aprovada pela Anvisa para o tratamento do câncer de mama, com base em ganho de sobrevida. A diferença que o everolimo trouxe, com o benefício de dobrar o tempo para a progressão da doença, é uma coisa poucas vezes vista em câncer de mama. Existe uma magnitude de efeito. A ANS obrigou o sistema privado a oferecer cobertura ao everolimo, mas a Conitec negou a incorporação no SUS. Digo que temos essa loucura regulatória porque a ANS, nas suas normativas, sustenta que se a Conitec recusar, os planos de saúde não estão obrigados a pagar. No entanto, o everolimo está na lista de cobertura contratual das drogas orais. São conclusões no mínimo divergentes ou contraditórias. Acho que a melhor forma para acabar com isso é a honestidade. É mais honesto dizer que o remédio funciona, mas que não existe dinheiro para pagar. Aí, começa a se abrir uma discussão sobre o subfinanciamento à saúde no Brasil. Essa situação de iniquidades, de diferenças, infelizmente, só tende a se aprofundar. O que assistimos não é a um debate técnico sobre a validade dos estudos ou dos desfechos, mas um debate sobre o orçamento da saúde. Reconhecer isso seria um bom começo.
O direito social do paciente de câncer vem um pouco mais fortalecido na agenda de 2015?
"É mais honesto dizer que o remédio funciona, mas que não existe dinheiro para pagar. Aí, começa a se abrir uma discussão sobre o subfinanciamento à saúde |
Acho que não. Não houve mudança de governo e as coisas tendem a continuar como estão. O governo vai continuar negando que a discussão final é sobre financiamento e não sobre efetividade. O brasileiro acha que vai resolver os problemas com a criação de leis. Não vai. Enquanto não houver investimento e uma gestão eficiente do Sistema Único de Saúde, não tem solução. A lei dos 60 dias chegou e simplesmente não funciona, e aí?
A consolidação de grupos como Oncoclínicas e rede D'Or-São Luiz pode desequilibrar a atual relação entre operadoras e prestadores de serviços na oncologia? Como isso pode afetar o paciente?
A consolidação na oncologia é uma profissionalização sem precedentes. Os grupos agora têm um poder de barganha também com o fabricante e brigam para reduzir o custo do tratamento oncológico. Todas essas clínicas ganham com a consolidação, seja com a indústria farmacêutica, que já começa a ver esse movimento, seja na relação com os convênios, que também vai viver essa profissionalização. Agora, a balança vai ficar para o lado das clínicas. Não é mais aquela pequena clínica sem poder de barganha e sem capacidade técnica de negociação, que antes ficava exposta a abusos, desde casos de solicitação de tratamentos que não existem até a troca de medicamentos. Com a consolidação, quem sai ganhando é o paciente.
Perfil:
Otávio Clark é médico com ênfase em Cancerologia, com Fellowship em Oncologia Baseada em Evidências e Metodologia Científica no H Lee Moffit Cancer Center (EUA). É Team Leader - CEO da Evidências - Kantar Health.