Ruffo de Freitas Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia, analisa o cenário do câncer de mama no Brasil, perspectivas e desafios. “Favorecer e fortalecer o direito da mulher é reconhecer que vazios de infraestrutura precisam ser enfrentados”, afirma o especialista.
O câncer de mama continua como o tumor que mais atinge as mulheres e representa a maior causa de morte por câncer, em todo o mundo. No Brasil, o maior número de casos ocorre nas regiões Sudeste e Sul, mas não é apenas a diferença regional que chama a atenção. Estudo da Universidade Federal de Goiás dá contornos bem concretos a uma realidade que é o retrato da desigualdade na saúde brasileira: nos últimos 30 anos, a mortalidade por câncer de mama no interior do país alcançou índices alarmantes, com taxas de óbito até 18 vezes maior que as grandes capitais. Ruffo de Freitas Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia, analisa o cenário do câncer de mama no Brasil, perspectivas e desafios.
Onconews: A oncoplástica ainda não é uma realidade no sistema público e estimativas indicam que apenas 10% das pacientes do SUS recebem reconstrução após o câncer de mama. Por quê?
Ruffo de Freitas Jr: Hoje, a mulher brasileira tem leis que amparam o direito à reconstrução da mama após a mastectomia ou após a realização da lumpectomia. E se é um direito, tanto assegurado à paciente da saúde suplementar quanto à paciente do SUS, temos que encontrar meios para fazer desse direito uma realidade. Apenas 5% a 10% das mulheres atendidas pelo SUS têm a possibilidade de ter a mama reconstruída após o câncer, o que evidentemente é muito pouco. São muitos gargalos, a começar pelo número limitado de instituições. Como são poucos centros, também faltam salas e o resultado é uma equação perversa. No SUS, para que se possa oferecer a reconstrução da mama a uma paciente, muitas vezes o tratamento de outra mulher com câncer de mama acaba sendo postergado. O terceiro entrave é a falta de cirurgiões em quantidade suficiente para atender essas pacientes em um país continental como o Brasil. E não bastassem essas dificuldades, o pagamento desestimula. A tabela do SUS para um procedimento complexo como a cirurgia reconstrutora da mama é em torno de 280 reais, incluindo a parte hospitalar. É um procedimento que demanda de duas a seis horas, traz risco de complicações, e você não consegue estimular um cirurgião a se especializar nas técnicas oncoplásticas com valores nesse patamar. Houve um ajuste recente, foi um pequeno avanço, mas está claro que precisamos fazer muito mais. Favorecer e fortalecer o direito da mulher é reconhecer que vazios de infraestrutura precisam ser enfrentados. Quando o Estado fizer a sua parte, estou certo de que haverá interesse dos cirurgiões e um ambiente mais propício a trazer soluções para um número bem maior de mulheres.
Desigualdades na assistência também estão na raiz do problema?
Certamente ajudam a explicar esse panorama brasileiro. Estivemos a frente de um estudo, publicado no The Breast, que analisou dados de mortalidade por câncer de mama e a tendência atual. O que esse estudo mostrou é que são dois brasis. Nas capitais, a maior oferta de serviços e de especialistas se reflete nas oportunidades de acesso ao diagnóstico e tratamento, mas no interior a situação é outra. A vasta maioria das capitais do país já demonstra redução na mortalidade por câncer de mama, incluindo Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Capitais que não conseguiram reduzir as taxas de mortalidade por câncer de mama, pelo menos estabilizaram, como acontece em Salvador, Florianópolis, Curitiba, Goiânia e Distrito Federal. Poucas são as capitais em que as taxas continuam em elevação, mas fora dos grandes centros o que se vê é o oposto, com taxas de morte ascendentes na absoluta maioria das cidades do interior país. Em 30 anos, a taxa de mortalidade por câncer de mama aumentou até 18 vezes mais no interior em relação às capitais.
E a concentração de mamógrafos, isso permanece?
Sem dúvida. Nós temos mais da metade dos mamógrafos concentrados nas grandes capitais e a outra metade se dilui em áreas enormes, o que não é nenhum exagero nesse país de dimensões continentais. De acordo com o Ministério da Saúde, precisa haver um mamógrafo disponível a um raio de 60 quilômetros. Agora, temos um estudo em curso para verificar que fatia da população fica fora dessa cobertura preconizada pelo MS. Já temos dados preliminares e o que se conclui é que existe de fato um grande número de mulheres que não tem fácil acesso ao exame mamográfico.
A SBM apoiou publicamente a campanha “Por mais tempo”, para as mulheres com câncer de mama metastático. Essa é uma nova pauta na agenda da SBM?
Quando lembramos das mulheres que tiveram o infortúnio de ter câncer de mama na década de 70 e desenvolveram metástases, todas elas faleceram em menos de 30 meses. No Brasil, a possibilidade nesse momento de uma mulher com câncer de mama metastático viver por 60 meses, tendo mais tempo, é de aproximadamente 30%. Uma em cada três. A grande questão é que hoje existem possibilidades reais de uma em cada duas mulheres com diagnóstico de câncer de mama viver por pelo menos cinco anos se tiver acesso à medicação adequada e ao tratamento adequado. Depende muito de nós. É por isso que as sociedades médicas têm obrigação de colocar a pesquisa e desenvolvimento em prol das pacientes e certamente apoiamos esse esforço. No estado de Goiás, através da Câmara Técnica de Saúde, temos conseguido medicamentos de alto custo, sem dificuldade de acesso, mas faço questão de lembrar que este não é o cenário ideal.
Por falar em cenário ideal, os testes genéticos para mutações BRCA estão acessíveis no SUS? E na saúde suplementar, o que esperar do novo Rol?
Infelizmente não. Hoje temos uma série de restrições no SUS e mesmo na saúde suplementar, porque apesar de fazer parte do rol da ANS, não há cobertura adequada para os testes genéticos. Algumas seguradoras e prestadoras de saúde não liberam o sequenciamento completo, mas apenas o teste para um grupo menor de alterações, e para a população brasileira isso não faz muito sentido. Essa é uma das questões que passa a integrar a nossa agenda em um futuro próximo, na esfera da saúde pública e privada. Em relação ao SUS, os testes de mutação certamente são uma reivindicação. Em relação ao novo Rol, vejo que não há sentido algum em adotar para a ANS o modelo da CONITEC, porque sabemos que além de parâmetros científicos são decisões fortemente apoiadas em parâmetros financeiros. A ANS deveria ter outro critério de análise e não nivelar por baixo e essa é sem dúvida uma grande preocupação.
Perfil
Ruffo de Freitas Júnior é mastologista e presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia