Em entrevista exclusiva, o oncologista Alexandre Palladino (foto), chefe da oncologia clínica do Hospital do Câncer I (INCA) e médico do Grupo Oncoclínicas, discute temas que vão do acesso à inovação no sistema público de saúde à humanização da assistência. “Os avanços não podem, de forma alguma, ofuscar ou substituir o cuidado médico, a escuta atenta das queixas do paciente, sejam elas físicas ou emocionais”, destaca.
Como se deu a escolha pela oncologia?
Eu queria uma especialidade que fosse desafiadora, com pacientes com grande complexidade, situações de doença em que eu pudesse ter uma atuação importante como médico, e achei que a oncologia me oferecia isso. Também percebia que que o paciente oncológico se envolvia muito com o médico, criava uma relação médico-paciente muito forte, muito bem estabelecida. É um paciente que acaba vivendo muito aquela doença, e é inevitável que isso aconteça, é uma situação limite. Tenho interesse em atuar não só em relação à doença, mas também em sua influência na vida do paciente, a parte emocional. Acho importante essa relação plena com o paciente, do tratamento integral, de controle de sintomas. Gosto desse aspecto mais amplo. É claro que isso é penoso, traz consequências, mas para mim foi um atrativo. E estamos falando de mais de vinte anos atrás, uma época em que a oncologia era muito diferente. Hoje temos avanços a cada congresso, a cada semana tem uma evolução na compreensão na biologia molecular, na medicina personalizada. Mas os avanços não podem, de forma alguma, ofuscar ou substituir o cuidado médico, a escuta atenta das queixas do paciente, sejam elas físicas ou emocionais. Esse é um aspecto que tem que ser mantido na prática médica em todas as áreas, inclusive na oncologia. Talvez principalmente na oncologia ou em outras especialidades que lidam com situações extremas.
Por falar em situações extremas, o burn out ainda é um assunto tabu na oncologia? Como a instituição pode ajudar?
O índice de burn out na oncologia é muito alto, a gente tem essa experiência no INCA, de jovens que desistem a residência no início, porque é um impacto muito grande, é uma especialidade que traz esse contato muito intenso com a terminalidade. No meu primeiro plantão como residente no INCA eu fui chamado para dar dois atestados de óbitos. Eu pensei, será que é isso mesmo? Na época era muito novo e me vi tendo que lidar com situações de terminalidade nessa intensidade. Mas você acaba criando mecanismos para se proteger. Não significa que o profissional crie algum tipo de barreira ou se torne menos sensível ao sofrimento do outro. São mecanismos de autoproteção.
No INCA nós temos a Divisão de Saúde do Trabalhador (DISAT), que oferece apoio psicológico para profissionais e residentes. Acho importante esse suporte porque é uma característica inerente da especialidade.
Como surgiu o convite para chefiar a oncologia clínica do Instituto Nacional do Câncer (INCA)?
Em 2018, o grupo dos médicos da oncologia se reuniu para escolher quem poderia assumir a chefia da área, e acabaram me escolhendo. Eu já tinha 12 anos de experiência na chefia do serviço de oncologia do Hospital Federal da Lagoa, que foi um grande aprendizado, e quando surgiu a oportunidade no INCA achei que era um desafio que valia a pena aceitar. E confesso que foi a melhor coisa que eu fiz. A gestão é uma experiência muito interessante, te proporciona um outro olhar, diferente daquele médico que está apenas na assistência.
A questão da inovação, por exemplo. Pensar a oferta de um recurso terapêutico para um determinado paciente, como médico, e ter uma visão mais macro, de saúde coletiva, como gestor. Quando você está sentado diante de um paciente existe aquela angústia de querer oferecer o último tratamento, o mais recente, que pode proporcionar melhores resultados. Você está atuando como médico, é natural que queira oferecer o melhor tratamento possível. Mas às vezes, em uma posição de gestão, você é confrontado com a falta de recursos, e precisa entender e aceitar que não é possível oferecer determinados tratamentos, mas pode oferecer uma alternativa satisfatória.
Que estudos chamaram sua atenção no ESMO 2020? Quais têm potencial de impactar a prática clínica, considerando especialmente a assistência pública?
Acompanhei mais de perto os estudos em tumores gastrointestinais e geniturinários, que são minhas áreas de interesse. No panorama GI, dois estudos para tratamento de pacientes com câncer de estomago e junção esofagogástrica chamaram a atenção, o Checkmate-649 e o ATTRACTION 4, ambos mostrando benefício da associação de imunoterapia com quimioterapia no tratamento de primeira linha.
Outro estudo interessante avaliou nivolumabe adjuvante em pacientes com câncer de esôfago, tanto adenocarcinoma quanto carcinoma epidermoide, submetidos a quimiorradioterapia e cirurgia, com doença residual na peça cirúrgica. Não temos dados de sobrevida global ainda, mas o ganho de sobrevida livre de progressão foi bastante significativo, de 11 meses para 22 meses.
Esses estudos não mudam a nossa prática no sistema público ainda. É preciso avaliar a posição das agências regulatórias, como seria o financiamento disso, porque existe um alto custo envolvido. Provavelmente, se a imunoterapia for indicada nesse cenário, precisa de uma seleção de pacientes mais criteriosa. A gente tem que ser mais assertivo.
O PRODIGE 13, avaliou o seguimento de pacientes com câncer colorretal após cirurgia, e demonstrou que em pacientes de baixo risco você pode substituir a tomografia pela ultrassonografia sem prejuízo de sobrevida. Este é um estudo que pode ter um impacto direto no serviço público, diminuindo custos e ampliando o acesso.
Em tumores geniturinários eu destacaria o ProFOUND, que demonstrou benefício de olaparibe em pacientes com câncer de próstata BRCA mutado, e o Checkmate 9ER, que avaliou nivolumabe e cabozantinibe em comparação com sunitinibe no tratamento de primeira linha do câncer renal metastático, com ganho bastante significativo.
Os principais estudos se concentram em drogas de alto custo, o que faz crescer o debate em torno da sustentabilidade da assistência. É possível equilibrar inovação e acesso no cenário da oncologia?
De fato, hoje os custos do tratamento oncológico são crescentes e, por vezes, se não são impagáveis, beiram o impagável. Às vezes você vê uma droga aprovada via fast track, e no congresso seguinte já aparece uma nova opção. Sempre tem algo novo surgindo, e sempre com um custo crescente, cada vez maior. É preciso pensar no benefício que se está buscando. Por exemplo, uma determinada droga é muito mais cara e não está associada a um ganho de sobrevida global, você vai incorporar no serviço público baseado no ganho de SLP? Não estou falando que é certo ou errado. São discussões difíceis, mas que têm que ser levantadas a todo momento.
Às vezes um benefício limítrofe não justifica a incorporação da droga porque o custo vai aumentar em três vezes, e esse custo pode ser direcionado para outra situação. Se você tem um protocolo bem estabelecido, você cria uma uniformidade. Porque uma das coisas que dificultam é a heterogeneidade enorme de tratamentos feitos no SUS, nas diferentes unidades, o que não faz sentido se você tem um sistema único de saúde. O ideal seria ter um protocolo único, já foram feitas algumas tentativas nesse sentido, mas o Brasil é muito grande, é difícil uniformizar isso.
Uma discussão muito presente na oncologia é justamente a desigualdade da assistência na saúde pública e privada. Como é trafegar nesses dois universos?
Muitas vezes me perguntam como lidar com essa diferença do que é oferecido no público e no privado. Mas a gente vê essa diferença dentro do sistema privado, porque dependendo da fonte pagadora você também tem diferença de disponibilidade de recursos. Então, a diferença não é só entre público e privado, é também dentro do sistema de saúde suplementar, e também entre diferentes serviços públicos. Agora, como oferecer mais? Uma maneira é aumentar o seu recurso, outra é usar de forma inteligente o recurso que você tem disponível, seja ele qual for. Isso é o básico. E utilizar de forma inteligente, respeitar protocolos de tratamento, selecionar melhor os pacientes. Seleção de pacientes é algo extremamente importante na oncologia praticada hoje em dia. A gente sabe que esses tratamentos mais caros não são apropriados para todos os pacientes, então é preciso encontrar mecanismos cada vez melhores de seleção de pacientes, que têm que andar em paralelo com o desenvolvimento das drogas. Porque senão fica inviável o pagamento.
Os biossimilares são um caminho para ampliar o acesso?
É um caminho que vai ser percorrido e não tem volta. O biossimilar é uma forma de diminuir o custo em algumas drogas e promover o acesso, obviamente observando questões de bioequivalência, biossegurança, prezando pela qualidade do biossimilar que está sendo utilizado. É muito fácil você não acreditar no que é oferecido. Basta fazer uma crítica, questionar a qualidade. Junta com o fato da produção da droga ser responsabilidade do governo, ou da Índia, para desacreditar a eficácia. Já vi estudos de biossimilares com superioridade não estatisticamente significativa, mas ligeiramente superior à droga original. Isso já coloca a questão sob outra perspectiva.
Com os genéricos, que são moléculas mais simples, também vimos uma desconfiança inicial da classe médica, da indústria, dos pacientes. Hoje, muitas farmacêuticas grandes têm seus braços de produção de genéricos, para não perder espaço.
Principalmente no sistema público, é cada vez mais evidente a necessidade de parcerias entre as atividades governamentais e os laboratórios, com transferência de tecnologia para produção de algumas dessas drogas em parceria com o governo, como é o caso de Farmanguinhos, por exemplo. Acho que essa é uma alternativa bastante razoável. A parceria público-privada precisa ser melhorada, isso é essencial.
De novo, é preciso amarrar protocolos de tratamento com mais vigor e melhorar mecanismos de seleção de pacientes. Não estou falando de cercear a prescrição do médico. Mas para uma determinada situação clínica, eventualmente você tem duas opções de tratamento que são equivalentes. Isso acontece na prática diária. A primeira opção tem um determinado custo, a segunda opção, o custo é duas vezes maior. Se você determina que a opção utilizada deve ser a de menor custo, e não está trazendo detrimento nenhum para o paciente, você consegue lidar com a pressão da inovação de forma mais clara, mais objetiva.
Hoje, existem leis que determinam prazos para a realização de exames diagnósticos em pacientes com suspeita de câncer e para o início do tratamento. Como resolver por decreto um problema que é estrutural?
Nós temos recursos limitados, e respeitar esses prazos é um desafio enorme, que requer muita estratégia. Sem dúvida, isso seria facilitado com a incorporação de mais recursos. Na impossibilidade de obter mais financiamento, é importante trabalhar melhor com o que você tem. Por exemplo, como você otimiza a fila de exames? Mesmo em hospitais de referência, muitas vezes a gente percebe pedidos de exames desnecessários. Às vezes é pelo hábito de solicitação, mas se você olhar os guidelines, talvez aquele exame não seja tão necessário. E isso sobrecarrega o sistema. Então, o uso racional dos exames solicitados também é uma forma para tentar cumprir prazos. É claro que é um desafio muito grande porque requer protocolos, educação médica, recursos, otimização de recursos, é muito difícil. Quando falamos das Leis dos 30 e 60 dias, estamos falando da chegada do paciente ao sistema. Mas o que acontece é que o paciente que já está dentro também sobrecarrega. Se você consegue organizar, proporciona mais espaço também para quem está chegando. É uma cadeia. A otimização dos recursos é um passo. Agora, sem dúvida nenhuma, ter mais recursos é muito importante também, porque realmente é difícil fechar a conta e cumprir os prazos exigidos.
Mudar um pouco o foco do tratamento sistêmico para a prevenção, por exemplo, poderia ajudar na racionalização desses recursos?
Eu acho que a classe médica faz pouquíssima orientação em relação à prevenção. O senhor tem que emagrecer, hein? Ponto. Sem uma orientação mais específica, um encaminhamento, um acompanhamento mais próximo. Na verdade, os médicos recomendam a manutenção de hábitos saudáveis, de manter o peso corporal ideal, evitar a obesidade, o sedentarismo, muito mais em relação à questão cardiovascular do que em relação à questão oncológica, apesar do benefício em relação a prevenção de doença oncológica ser até mais importante.
A vacinação também é outra ênfase que deveria ser dada, contra o HPV, contra a Hepatite B, é muito importante. E o curioso é que no nosso país a gente tenha vacina sobrando. É realmente surreal, um país com a incidência de câncer de colo de útero elevadíssima e você ter sobra de vacina. Acho que os médicos deveriam realmente orientar um pouco melhor, assumir um protagonismo. Mas não só os médicos, talvez seja necessária uma campanha de vacinação um pouco mais efetiva.
Também é papel do profissional orientar sobre os exames que precisam ser feitos em relação a prevenção do câncer. A mulher até faz os exames preventivos, mas colonoscopia aos 50 anos de idade, por exemplo, não é recomendada frequentemente. No entanto, é extremamente importante, pois você pode diagnosticar pólipos benignos que vão dar origem a câncer de cólon e reto no futuro e poderiam ser prevenidos com uma simples colonoscopia.
O diagnóstico precoce é uma coisa curiosa. Se você faz screening, tem que oferecer recursos para tratar, dar seguimento. Esse é um ponto importante. Não adianta fazer mamografia em todas as mulheres e não ter para onde encaminhar aquelas com lesões suspeitas. Mas não tenho dúvida de que apesar de no início você fazer mais diagnósticos e aumentar o número de tratamentos de doença localizada, no médio e longo prazo você vai ter uma otimização de recursos importante, porque vai ter menos doença avançada.
Melhorar o diálogo entre as unidades básicas de saúde e os centros de alta complexidade seria um caminho?
Com certeza isso melhoraria o atendimento dos pacientes. Melhorar o funcionamento da rede é uma maneira de fazer com que o paciente seja melhor encaminhado. O ideal seria conseguir setorizar melhor o tratamento, em diferentes unidades dedicadas aos diferentes tipos de câncer. Essa é uma estratégia importante que requer nada mais do que organização.
Existe um projeto de tentar fazer uma interteleconsulta em unidades básicas de saúde com um profissional do INCA para avaliar quais casos devem ou não ser encaminhados, e para onde. Um paciente oncológico numa unidade de saúde que não possui atendimento oncológico precisa ser regulado pela Secretaria Estadual de Saúde e ser encaminhado para uma unidade de oncologia. Você faz uma teleconsulta e discute o caso para ajudar nesse encaminhamento. É uma estratégia interessante, ainda em desenvolvimento, uma tentativa de estabelecer um contato mais estreito das unidades básicas de saúde. Mas isso resolve pontualmente alguns casos, não dá para discutir todos os casos dessa maneira. Acho que é preciso um sistema que funcione quase sozinho, uma rede estruturada, com critérios pré-definidos para encaminhamento. A gente tem hoje uma regulação na rede, mas sempre é preciso rever, melhorar esse fluxo de atendimento.
Como a pandemia da COVID-19 afetou a assistência oncológica e que lições ficam para a sociedade e profissionais de saúde?
Acho que a pandemia valorizou tudo que é referente à área da saúde, o médico, o profissional de saúde, a pesquisa clínica, as pessoas passaram a dar um pouco mais de valor a isso. A COVID-19 nos ensinou é que o SUS é uma das coisas mais importantes que a gente tem, mesmo com todas as dificuldades. Imagine se a gente não tivesse o SUS, como seria essa pandemia.
Especificamente em relação à oncologia, a gente não deixou de atender os pacientes, as cirurgias urgentes continuaram sendo realizadas, mas tivemos uma diminuição nos leitos, que foram direcionados para atendimento de pacientes com COVID. Também observamos uma baixa considerável nas equipes. No serviço de oncologia do Hospital do Câncer I, cerca de 40% dos médicos foram infectados pela COVID, inclusive eu. Os residentes, praticamente todos ficaram doentes, porque muitos trabalham fora do horário da residência e acabam ficando mais expostos. Então teve um impacto, mas também trouxe vários aprendizados. O principal deles foi a valorização do lugar onde a gente trabalha, um sistema de saúde que de fato existe e é importante para a população. Trouxe a sensação de pertencimento, de estar incluído em algo importante. A COVID-19 também escancarou a importância do trabalho em grupo em medicina, principalmente em uma situação de escassez de profissionais, com muitos profissionais doentes, de entender que o colega está afastado porque está doente, e amanhã pode ser você. Isso criou uma unidade maior no serviço.
Todo mundo sabe que tem que lavar a mão para atender paciente, tem que usar álcool gel, mas isso foi estressado ao extremo nesse período. A gente reaprendeu que lavar as mãos é uma das atitudes médicas mais importantes que existe. E é assim desde que a medicina moderna começou a existir. Enquanto a gente discute o custo dos noos tratamentos, às vezes se esquece desse detalhe tão simples, tão básico, e que pode evitar mortes.
Outro aprendizado muito importante, bastante pertinente à oncologia, é de que a pior maneira da pessoa morrer é sozinho. E isso acontece com o paciente com COVID, que tem que ficar isolado. Isso reforça a necessidade de dar atenção ao seu paciente, de estar presente, de proporcionar um atendimento mais humano.
Perfil: Alexandre Palladino é médico formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com residência em hematologia pela UFRJ e em oncologia clínica pelo Instituto Nacional do Câncer. É chefe da oncologia clínica do Hospital do Câncer I (INCA) e médico do Grupo Oncoclínicas.