A era da medicina personalizada tem impulsionado o uso de abordagens moleculares na prática clínica, mas limitações importantes ainda inibem a adoção de métodos mais modernos na rotina da oncologia brasileira. Existem caminhos para ampliar o alcance dessa medicina de precisão e aumentar a confiabilidade dos diagnósticos na era pós-genômica? Especialistas mostram que sim e ensinam como é possível aumentar a acurácia diagnóstica.
Em uma linha do tempo, o chamado sequenciamento de próxima geração (NGS) nasceu em 2005, com a promessa de desvendar genomas inteiros em uma velocidade sem precedentes. Estava aberto o caminho para uma série de novas aplicações, o que fez multiplicar os métodos e sistemas comercialmente disponíveis. Em 2010, estudo da Nature1 apontou a revolução: a demanda nunca foi maior e catalisou o desenvolvimento de diferentes tecnologias de NGS. Mas não dá para negar que desafios importantes avançam em meio a tanta inovação.
“No Brasil existem excelentes laboratórios de análises clínicas fazendo testes genéticos, mas também existem aqueles que só fazem mutações pontuais, mas oferecem e cobram a análise de um gene completo. O paciente, coitado, na maioria das vezes iletrado no assunto, paga por litros e recebe microlitros", compara a bióloga molecular Gabriela Felix, da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Gonçalo Muniz (Fiocruz-BA). “É mais do que necessário instituir uma fiscalização”, defende a especialista, em um primeiro alerta aos que atuam na linha de cuidados em câncer.
Estudo publicado em 20162 mostra que, diante do acelerado ritmo de desenvolvimento, o NGS ainda está à espera de procedimentos padronizados para a formatação de dados, assim como a gestão da qualidade é uma preocupação global.
“Essa é uma área nova no diagnóstico de câncer e evidentemente são muitas as novidades nas quais oncologistas e oncocirurgiões precisam tomar conhecimento”, diz Carlos Bacchi, nome de referência na oncopatologia brasileira. A genômica não é apenas um novo campo de conhecimento, mas uma área em constante transformação. “Informações novas em análise molecular e NGS surgem com muita rapidez”, diz ele, para quem as noções de genômica se tornaram atributo indispensável na bagagem de oncologistas e oncocirurgiões. “É preciso ter conhecimentos básicos sobre essas metodologias e acompanhar, na medida do possível, as novidades que vão surgindo na literatura”, recomenda.
Método
Enquanto a técnica de sequenciamento de Sanger, criada na década de 70, permite a pesquisa em genes isolados, a NGS abriga painéis multigenes, capazes de prover com rapidez grandes volumes de dados e justamente por isso promete ser bem mais barata e garantir economia substancial em relação aos métodos convencionais. No entanto, questões relacionadas à implementação na prática diária são oportunidades abertas.
Como eleger o melhor método em meio à variedade de métodos analíticos disponíveis? Como correlacionar resultado e significado clínico? São questões que, certamente, fazem a diferença para médicos e pacientes.
Para André Murad, professor de Oncologia da Universidade Federal de Minas Ferais (UFMG), há particularidades do NGS que precisam ser reconhecidas na hora de solicitar os testes moleculares e interpretar os resultados obtidos pelas diferentes tecnologias disponíveis. “É fundamental saber se necessitamos de uma análise restrita (de um ou poucos genes), ou multigênica, se a necessidade é identificar alterações ou mutações pontuais e pré-determinadas, conhecidas como hotspots, ou, ainda, regiões gênicas mais abrangentes ou mesmo todo o exoma tumoral, a chamada comprehensive sequencing”, explica.
Os painéis em NGS disponíveis no mercado brasileiro variam entre aqueles com quantidade menor de genes e hotspots, até os mais completos, que chegam até 315 genes e fornecem a análise de extensas regiões gênicas e mesmo de todo o exoma, através do whole genoma sequencing (WGS), empregado quando a pesquisa não envolve alterações moleculares previamente conhecidas, como acontece nos tumores raros, ou se a carga mutacional precisa ser estabelecida.
O principal obstáculo, além do custo elevado, é a inutilidade prática de identificar mutações para as quais não existem terapias ou drogas-alvo desenvolvidas. “Na grande maioria das situações, painéis mais restritos e mais baratos detectam com relativa precisão as mutações, alterações do número de cópias e rearranjos gênicos necessários para a correta seleção da terapia a ser empregada”, diz Murad.
Significado clínico
Interpretar os testes moleculares é um desafio a mais. “Os oncologistas estão mais familiarizados com a rotina dos testes somáticos e aprenderam que nesses casos a resposta diagnóstica varia entre um resultado positivo ou um resultado negativo, indicando se a mutação está ou não presente”, resume o geneticista Danilo Vianna.
Já nos estudos de mutação germinativa, as dificuldades de interpretação aumentam. Aqui, o resultado não se limita a um binômio, mas pode desvendar um universo de possibilidades. “Existe um grande desafio envolvido na pesquisa de mutação germinativa. Enquanto algumas variantes podem facilmente ser classificadas de patogênicas, porque já foram identificadas e têm um número maior de evidências, outras foram pouco descritas na literatura e por isso são classificadas como variantes de significado incerto”, explica Vianna. "Estudos mostram que mais de 90% dos casos de VUS reclassificados até hoje foram reclassificados como benignas. Então, aquele médico que se baseia em uma variante de significado incerto para definir conduta, pode errar em 90% dos casos”, diz o especialista. “A variante per se não deve indicar a forma como o paciente deve ser abordado, mas muitos oncologistas não sabem interpretar esse resultado e não contam com o suporte de serviços de oncogenética, ainda escassos no Brasil”, conclui.
E se o incerto atrapalha, um resultado negativo também não é sempre tranquilizador. “É o falso alívio, a falsa sensação de segurança”, compara Danilo. “Um resultado negativo não garante que o indivíduo está livre de algum tipo de disfunção hereditária e muitas vezes o oncologista também não está preparado para compreender esse resultado. O valor preditivo do exame é baixo e isso precisa ser considerado na hora de interpretar. A história da família pode dizer muito mais e o médico nem sempre está atento”, alerta o geneticista.
Estudo publicado em julho no JCO3 apontou distâncias entre a incorporação dos testes genéticos e a tomada de decisões na prática clínica. Os dados mostram que parcela importante de pacientes com câncer de mama em estágio inicial sofreu mastectomia bilateral sem testes genéticos, ou antes do teste BRCA1/2 ter sido realizado. O estudo também mostrou que variantes genéticas de significado incerto (VUS) nos genes BRCA1/2 levaram muitos mastologistas nos Estados Unidos à decisão de realizar mastectomia bilateral, sem discutir os resultados com um serviço de aconselhamento genético.
Editorial na mesma edição do JCO4 classificou de “alarmante” a decisão de oferecer às pacientes com VUS tratamento idêntico ao dedicado às portadoras de mutação em BRCA. Com isso, 51% das pacientes de risco médio com VUS, nas quais a cirurgia profilática das mamas não é recomendada formalmente, foram submetidas à mastectomia bilateral, escreveram os autores. "Como a maioria das VUS são, em última instância, reclassificadas como benignas, a gestão deve basear-se no histórico pessoal e familiar e não na presença ou ausência da própria variante de significado incerto (VUS)”, recomendaram.
Fica a perspectiva de que há desafios importantes que podem ser vencidos com uma dose a mais de informação.
Amostra
Outra dúvida frequente é o tipo de material utilizado na análise. Faz diferença uma amostra de DNA extraída de tecido armazenado em formalina (FFPE) ou de uma amostra a partir de punção aspirativa?
Mesmo com o advento da biópsia líquida, o tecido tumoral continua como a fonte mais comum e confiável para a investigação de biomarcadores. “O melhor material para avaliação molecular em câncer ainda é a biópsia do tumor com obtenção de maior quantidade possível, já no primeiro ato cirúrgico. Material obtido através de punção aspirava (citologia) necessita de validação mais robusta na literatura”, avalia Bacchi. “Hoje em dia, o tecido fixado em formalina e incluído em parafina é adequado para virtualmente todas as técnicas moleculares, incluindo sequenciamento e análises de NGS”, diz o patologista. “O material citológico só deve ser usado para avaliação molecular se houver algum impedimento em biopsiar o paciente”, ressalva.
A forma de obtenção da amostra é outro alerta importante. “A qualidade do sequenciamento de um DNA degradado é sempre inferior”, observa Gabriela. Significa que ao lado dos patologistas, geneticistas e equipes de bioinformática, também os clínicos e cirurgiões desempenham papel essencial para assegurar a qualidade dos testes moleculares. Solicitar testes adequados, fornecer espécimes de alta qualidade e informações clínicas precisas e pertinentes são medidas que certamente afetam o resultado final e podem melhorar a acurácia diagnóstica.
Referências
1 - Michael L. Metzker et al. Sequencing technologies — the next generation Nat Rev Genet. 2010 Jan;11(1):31-46. doi: 10.1038/nrg2626. Epub 2009 Dec 8.
2 - Standardization and quality management in next-generation sequencing, Appl Transl Genom. 2016 Sep; 10: 2–9. doi: 10.1016/j.atg.2016.06.001
3 - Gaps in Incorporating Germline Genetic Testing Into Treatment Decision-Making for Early-Stage Breast Cancer. Allison W. Kurian, Yun Li, Ann S. Hamilton, Kevin C. Ward, Sarah T. Hawley, Monica Morrow,
4 - Genetic Testing in Patients With Newly Diagnosed Breast Cancer: Room for Improvement - J Clin Oncol. 2017 Jul 10;35(20):2221-2223. doi: 10.1200/JCO.2017.72.8816. Epub 2017 Apr 14. - Ahn S1, Port ER
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