Atenção primária tem o desafio de ganhar resolutividade como porta de entrada para a assistência. Modelo de educação médica tem impacto nos sistemas de referência e contrarreferência.
Ao lado da assimetria entre oferta e demanda, a passagem do serviço básico ao serviço de referência é outro importante gargalo para a detecção precoce do câncer e a assistência oncológica oportuna.
A aposentada Sílvia Helena de Oliveira (69)*, que vive na capital paulista, concluiu em junho a radioterapia para o tratamento de um câncer de mama e fala que tem sido atendida de “forma impecável” no Sistema Único de Saúde. Ela foi diagnosticada e iniciou o tratamento no Ambulatório Médico Especializado Barradas, na zona Sul de São Paulo, e está em tratamento no ICESP. O tempo entre a confirmação do diagnóstico, a cirurgia e o início da terapia adjuvante foi curto, avalia a aposentada. Mas foi uma longa espera entre a reclamação do sintoma na Unidade Básica de Saúde (UBS) e o encaminhamento ao médico especialista.
“Em 14 de novembro de 2014 fui ao posto de saúde com uma forte dor na axila. Fiquei com um caroço do tamanho de um ovo debaixo do braço”, descreve Sílvia. Na UBS, recebeu a prescrição de um anti-inflamatório e foi orientada a voltar depois. “Só consegui a consulta com uma clínica geral para o meio do ano seguinte. Fiz todos os exames e, com o resultado, a médica pediu a biópsia e o encaminhamento para o mastologista. Era câncer. A cirurgia foi marcada para 18 de fevereiro de 2016”, conta a paciente. “Foi mais de um ano de espera”, conclui.
Casos como esse ilustram que o gargalo nem sempre é a falta de acesso às unidades de saúde pública, mas passa pela falta de resolutividade da atenção básica e denuncia sua frágil estruturação.
No final dos anos 70, a conferência internacional de saúde realizada em Alma-Ata, na ex-União Soviética, lançou muitos dos pilares para estruturar os serviços básicos, mas até hoje parece faltar um olhar mais concreto sobre o papel da atenção primária como porta de entrada para o acesso aos cuidados em saúde.
Resolutividade
O desafio não é apenas valorizar o nível de atenção primária, mas preparar a formação médica para reconhecer precocemente os sinais e sintomas do câncer. Estudo da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) avaliou a percepção de alunos de um curso de medicina quanto ao conhecimento de habilidades para prevenção e controle do câncer e mostrou que 87% consideraram insuficiente o ensino do câncer durante a graduação e 52,1% e 73% dos alunos chegaram ao final do curso sem segurança para executar exame clínico das mamas e o preventivo para câncer do colo do útero, respectivamente (veja quadro). Em relação ao exame clínico para identificar lesões precursoras do câncer de pele e ao toque retal, importante para o rastreamento do câncer de próstata, os resultados foram semelhantes: 60,2% e 64,9%, respectivamente, consideram-se despreparados.
“Mais do que um diagnóstico situacional do ensino de câncer, este trabalho permite direcionar e alertar sobre a importância de reformas e aprimoramentos curriculares e, com isso, contribuir com a qualidade do serviço de saúde prestado para a população”, concluem os autores.
Percepção de alunos sobre práticas para controle do câncer
AÇÃO | ASSUNTO | PREPARADOS (%) | DESPREPARADOS (%) | PREFIRO NÃO DIZER (%) |
---|---|---|---|---|
Aconselhar | prevenção do tabagismo | 76,7 | 21,6 | 1,7 |
cessação do tabagismo | 79,7 | 16,2 | 4,1 | |
fotoproteção | 74,0 | 17,8 | 8,2 | |
alimentação saudável | 90,4 | 6,8 | 2,8 | |
Execução | exame clínico para câncer de pele | 31,1 | 60,2 | 8,7 |
exame clínico para câncer de mama | 45,2 | 52,1 | 2,7 | |
coleta de material para colpocitológico | 21,6 | 73,0 | 5,4 | |
exame de toque retal | 31,1 | 64,9 | 4,0 |
Diferentes pesquisas e teóricos da saúde questionam os currículos de grande parte das escolas de graduação médica, sob a crítica de que ainda são concebidos para um modelo biomédico fragmentado, com forte herança da medicina flexneriana, priorizando muitas vezes a manifestação clínica da doença e não a ótica da prevenção.
A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) quer incorporar o curso de Oncologia Básica como disciplina obrigatória nas faculdades de medicina. A proposta nasceu em 2012, depois que levantamento encomendado pela SBOC mostrou que em uma amostra de 110 faculdades de medicina, 70% não apresentam Oncologia na grade curricular; em 7 das 33 faculdades que oferecem o curso, Oncologia aparece apenas como disciplina optativa.
No Brasil, não há consenso sobre a resolutividade esperada dos serviços de atenção primária, mas fica claro que é preciso avançar. Estimativas do INCA mostram que 60% dos pacientes brasileiros chegam aos centros de câncer com doença avançada.
Referência: Autoavaliação de egressos quanto à capacitação para práticas de controle do câncer - Diogo Ferreira et al - Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto - Vol. 14 nº 1 - Jan/ Mar 2015.
*Em cumprimento aos preceitos éticos a reportagem traz um nome fictítio para proteger a identidade do paciente.
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