Ensaio clínico randomizado demonstrou a eficácia de não inferioridade de um dispositivo de ablação térmica portátil e movido à bateria em comparação à crioterapia e à excisão eletrocirúrgica como estratégia para tratar lesão cervical pré-maligna em ambientes com recursos limitados. O médico epidemiologista Arn Migowski (foto), comenta o estudo.
“Nossos resultados em um cenário do mundo real fortalecem a base de evidências existente para organizações nacionais e internacionais recomendarem ablação térmica para lesões cervicais pré-malignas”, concluem os autores.
Uma alternativa tecnológica acessível e tão eficaz quanto as técnicas padrão melhoraria muito o acesso ao tratamento de lesão cervical pré-maligna. Neste ensaio clínico randomizado (NCT02956239), um total de 3.124 mulheres positivas na inspeção visual com ácido acético e elegíveis para terapia ablativa foram randomizadas para um dos braços de tratamento. O teste do papilomavírus humano (HPV) foi realizado no início e no acompanhamento. O desfecho primário foi o sucesso do tratamento, definido como depuração do HPV em participantes com HPV positivo no início ou uma inspeção visual negativa com teste de ácido acético para aquelas que tiveram um teste inicial de HPV negativo.
Após um acompanhamento médio de 12 meses, as taxas de sucesso do tratamento foram de 74,0%, 71,1% e 71,4% para os braços de ablação térmica, crioterapia e LLETZ, respectivamente, demonstrando assim a não inferioridade (P = 0,83). A análise mostra que a ablação térmica foi um procedimento seguro e bem aceito. Apenas 3,6% das mulheres randomizadas para ablação térmica relataram dor moderada a grave, em comparação com 6,5% e 1,9% para os braços crioterapia e LLETZ, respectivamente.
“ Nosso ensaio clínico randomizado realizado em um programa de triagem cervical em andamento na Zâmbia demonstrou que a taxa de sucesso do tratamento da ablação térmica realizada por enfermeiras treinadas não foi inferior àquelas observadas para crioterapia e LLETZ”, destacam os autores. Os perfis de segurança de todos os três métodos de tratamento foram comparáveis. “Nosso ensaio clínico randomizado demonstra a segurança e eficácia da ablação térmica, que não é inferior à crioterapia ou à excisão cirúrgica”, concluem.
O trabalho contou com participação da IARC (International Agency for Research on Cancer) e está disponível em acesso aberto na Nature Medicine.
O estudo em contexto:
Ensaio clínico randomizado de não-inferioridade da termoablação na prevenção do câncer do colo do útero: interpretação das evidências e avaliação de sua aplicabilidade para a prática clínica brasileira
Por Arn Migowski, médico epidemiologista
O protocolo de rastrear e tratar, prescindindo da confirmação histopatológica, vem sendo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como estratégia aceitável de controle do câncer do colo do útero (CCU) em países de baixa e média renda, após rastreamento com visualização de ácido acético ou com testes de HPV de alto risco. Embora a exérese da zona de transformação (EZT) seja considerada o tratamento padrão das lesões precursoras do CCU, a termoablação (TA) e a crioterapia vem sendo utilizadas nesses contextos em casos com critérios clínicos que os tornam elegíveis para tratamento ablativo tais como: zona de transformação (ZT) do tipo I; ZT e qualquer lesão presente serem completamente ectocervicais; a lesão, se presente, cobrir menos de 75% da ectocérvice; e não haver suspeita de câncer invasivo. Nesse tipo de contexto a TA possui vantagens sobre a crioterapia, por estar associada a menor tempo de tratamento, menos desconforto para pacientes, entre outras vantagens logísticas. Contudo, a TA ainda carecia de evidências conclusivas sobre sua efetividade e é isso que esse novo ensaio clínico randomizado trouxe, ao comparar a TA com a crioterapia e a EZT1.
O desfecho primário incluiu tanto o clearance do HPV de alto risco detectado na linha de base, quanto uma inspeção visual por ácido acético negativa, nos casos negativos para HPV que possuíam lesão visível no início do estudo. É importante salientar que o estudo não visava demonstrar qual alternativa era superior e nem se havia equivalência entre elas, mas sim a não-inferioridade da TA. A diferença existente foi considerada aceitável dentro de uma margem de não-inferioridade previamente definida, que aqui foi o limite interior do intervalo de confiança de 95% das razões de risco estar acima de 0,61, quando comparada às outras intervenções. O estudo foi realizado na Zâmbia, país da África subsaariana, região onde há importantes dificuldades de acesso tanto à realização de exame citopatológico, quanto à análise histológica, além do baixo acesso à assistência médica em geral. Os resultados do presente estudo trazem evidências relevantes para subsidiar mudança de conduta clínica nesse tipo de contexto.
Contudo, no Brasil, a incorporação dessa conduta na prática clínica requer ainda maior discussão. O padrão ouro para se evitar tanto sobretratamento quanto tratamentos insuficientes ainda é o exame colposcópico com realização de biópsia ou EZT nos casos indicados. Esses protocolos por padrão pressupõem a existência de médico ginecologista treinado em colposcopia e também na realização de biópsia ou EZT, bem como disponibilidade de equipamentos específicos e análise por médicos patologistas. Nas diretrizes brasileiras vigentes, em casos lesões de alto grau no rastreamento citopatológico encaminhados para a colposcopia, a presença de achados anormais maiores, ZT tipos 1 ou 2, lesão restrita ao colo e ausência de suspeita de invasão ou doença glandular, é indicado “ver e tratar” com excisão tipo 1 ou 2, o que otimiza o processo, mas em grande parte não prescinde da infraestrutura e expertise supracitadas. Por outro lado, é bem conhecido que há muitos subgrupos populacionais com significativas dificuldades de acesso a serviços de saúde no país e mesmo para aquelas que eventualmente conseguem ser rastreadas a perda de seguimento é muito alta, comprometendo a efetividade de todo o processo. O resultado é a permanência de taxas de incidência e mortalidade relativamente altas por um câncer que é prevenível.
A equidade, princípio do SUS, não deve ser confundida com padronização de condutas iguais para todos, mas sim a necessidade de estratégias que se adequem às necessidades de cada um, para diminuir as desigualdades existentes. Isso resulta numa complexa discussão tanto do ponto de vista técnico, quanto bioético. A despeito de ser oficialmente recomendado há anos, ainda há dificuldades na disseminação da prática de EZT fora do ambiente hospitalar no Brasil. E esse é também um aspecto que deve ser levado em consideração nas futuras discussões sobre possíveis protocolos alternativos. O aperfeiçoamento da estratificação de risco com o advento do rastreamento primário por testes moleculares com genotipagem, aprovado para incorporação recentemente pela Conitec, também apresenta um cenário propício à inclusão desse tipo de discussão na elaboração das futuras diretrizes clínicas.
Referência:
- Basu, P., Mwanahamuntu, M., Pinder, L.F. et al.A portable thermal ablation device for cervical cancer prevention in a screen-and-treat setting: a randomized, noninferiority trial. Nat Med(2024). https://doi.org/10.1038/s41591-024-03080-w