A composição da microbiota pode ser prognóstica de sobrevida para pacientes com neoplasias hematológicas submetidos a transplante alogênico de células hematopoiéticas. É o que mostram os dados reportados por Peled, JU et al na New England Journal of Medicine (NEJM). Dan Waitzberg (na foto, à esquerda), professor da FMUSP e diretor científico da Bioma4me, e o hematologista Carlos Chiattone, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e coordenador do Núcleo de Onco-Hematologia do Hospital Samaritano, comentam os resultados do estudo.
Os pesquisadores analisaram a composição microbiológica das amostras fecais obtidas de pacientes submetidos a transplante alogênico de células hematopoiéticas, em quatro centros, através de sequenciamento do RNA ribossômico 16S.
O estudo, que tem como pesquisador sênior o hematologista Marcel R.M. van den Brink, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, examinou associações entre diversidade de microbiota e mortalidade usando a análise de riscos proporcionais de Cox. “Para a estratificação das coortes em grupos com maior e menor diversidade, utilizamos o valor mediano da diversidade observado no centro de estudos em Nova York. Na análise de coortes independentes, o centro de Nova York foi a coorte 1 e três centros na Alemanha, Japão e Carolina do Norte compuseram a coorte 2”, descrevem os autores.
Resultados
Foram analisadas 8767 amostras fecais obtidas de 1362 pacientes submetidos a transplante alogênico de células hematopoiéticas, nos quatro centros participantes. A presença de maior diversidade de microbiota intestinal foi associada a menor risco de morte em coortes independentes (coorte 1: 104 mortes entre 354 pacientes no grupo com maior diversidade vs. 136 mortes entre 350 pacientes no grupo com menor diversidade; taxa de risco ajustada, 0,71; Intervalo de confiança de 95% [IC], 0,55 a 0,92; coorte 2: 18 mortes entre 87 pacientes no grupo de maior diversidade vs. 35 mortes entre 92 pacientes no grupo de menor diversidade; taxa de risco ajustada, 0,49; IC95% 0,27 a 0,90).
As análises de subgrupos identificaram associação entre a menor diversidade da microbiota intestinal e maior risco de morte relacionada ao transplante e morte atribuível à doença do enxerto contra o hospedeiro. As amostras obtidas antes do transplante evidenciaram que um padrão alterado, com menor diversidade da microbiota intestinal antes do transplante, foi associado à menor sobrevida. Ao contrário, a maior diversidade da microbiota intestinal no momento do enxerto de neutrófilos foi associada a menor mortalidade, com redução relativa no risco de morte de 29% e 51%, nas coortes 1 e 2, respectivamente.
A conclusão dos pesquisadores indica que o padrão caracterizado por perda de diversidade e dominação por táxons únicos está associado a maior risco de morte.
“Os resultados reforçam a importância da composição da microbiota intestinal (MI) em câncer. Alterações da MI podem influenciar os resultados pós-operatórios de cirurgia de câncer do cólon e do uso de Mabs em câncer de pulmão e melanoma”, esclarece Waizberg. Para o diretor do GANEP Nutrição Humana, a baixa diversidade encontrada poderia, antes do transplante, ser modificada com intervenções específicas de prebióticos, probióticos e simbióticos. “Torna-se de alto interesse para oncologistas considerar a pesquisa da microbiota intestinal de seus pacientes, o que poderá indicar prognóstico e resposta ao tratamento”, avalia.
O hematologista Carlos Chiattone destaca a extrema relevância do artigo na área dos transplantes de células-tronco hematopoéticas. “O papel da composição da microbiota humana no desenvolvimento de diferentes doenças é conhecido há algum tempo. Recentemente, alterações na microbiota vêm sendo descrita como fator negativo na evolução dos transplantes alogênicos, particularmente com a frequência e gravidade da doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH)”, explica.
Chiattone aponta duas questões críticas na disruptura da microbiota durante os transplantes alogênicos: a antibioticoterapia e a dieta. “Estudos pré-clínicos têm mostrado associação com desenvolvimento de DECH. Pequenos estudos unicêntricos têm tentado manipular a microbiota com o intuito de melhorar os resultados dos transplantes. No entanto, persistem dúvidas se estes resultados podem estar sendo impactados por questões de variações geográficas na composição da microbiota. Nesse estudo, o padrão de alteração da microbiota foi similar nos diferentes centros participantes, independentemente da localização geográfica”, observa.
Para Chiattone, o relevante foi mostrar que a maior diversidade na microbiota intestinal no período da recuperação de neutrófilos foi associada com menor mortalidade. “Este estudo nos direciona a buscar alternativas para restauração e preservação da flora intestinal durante o processo de transplante de células-tronco hematopoéticas”, conclui.
O estudo recebeu financiamento do National Cancer Institute dos Estados Unidos.
Referências: Microbiota as Predictor of Mortality in Allogeneic Hematopoietic-Cell Transplantation - Jonathan U. Peled et al - N Engl J Med 2020; 382:822-834 - DOI: 10.1056/NEJMoa1900623