Uma análise de dados genômicos que considerou mais de 119.000 amostras de câncer sugere a necessidade de revisitar a atual classificação das alterações no gene BRAF, com um novo olhar sobre os mecanismos de ativação de RAS em variantes não-V600. Os resultados têm implicações clínicas importantes. “Este é o primeiro estudo até o momento a avaliar sistematicamente a dependência RAS de alterações no gene BRAF em bancos de dados genômicos de câncer no mundo real”, descrevem Zhao Y et al. no JAMA Network Open. Letícia Ferro Leal (foto), do Centro de Pesquisas em Oncologia Molecular do Hospital de Câncer de Barretos, analisa os resultados.
Com o objetivo de compreender a dependência de RAS e os mecanismos de ativação em tumores com variantes do gene BRAF, os pesquisadores consideraram uma análise transversal a partir de dados de 119.538 amostras de câncer usando bancos de dados genômicos, incluindo a base do GENIE (Genomics Evidence Neoplasia Information Exchange) e do cBioPortal, incluindo o TCGA (The Cancer Genome Atlas), (acessado em 24 de março de 2020), além de 2.745 amostras de câncer do Mayo Clinic Genomics Laboratory (acessadas de 1 de janeiro de 2015 a 1 de julho de 2020). Foram calculadas as frequências de alterações no gene BRAF individualmente e também as alterações coexistentes nos genes da família RAS (KRAS, NRAS e HRAS) e nos genes reguladores de RAS (NF1, PTPN11 e CBL).
Resultados
A análise genômica considerou um total de 2.745 amostras de câncer de 2.708 pacientes testadas pelo Mayo Clinic Genomics Laboratory e amostras de 119.538 pacientes do GENIE e do banco de dados cBioPortal.
Zhao Y et al. descrevem que em 119.538 amostras de câncer, alterações de classe 1 de BRAF e fusões do gene BRAF foram mutuamente exclusivas às alterações de genes da família RAS (KRAS, NRAS e HRAS) ou genes reguladores de RAS (NF1, PTPN11 e CBL), confirmando serem independentes da família RAS. Por outro lado, os autores identificaram que as alterações de BRAF de classes 2 e 3 mostram frequências variáveis de concomitância às alterações dos genes da família RAS, sugerindo uma heterogeneidade na dependência de RAS e uma necessidade de revisitar a classificação de alterações do gene BRAF.
Os autores destacam ainda que essas alterações de BRAF coexistentes com alterações da família RAS também envolvem genes reguladores de RAS – por exemplo, a variante BRAF p.(S467L) com um odds ratio de 8,26 para NF1, 9,87 para PTPN11 e 15,23 para CBL). Estas alterações coexistentes ocorrem em uma variedade de tipos de câncer e podem ser câncer-específicas.
“Algumas alterações coexistentes com alterações de BRAF, como por exemplo, as variantes em HRAS são responsáveis por 46,7% de todas as alterações RAS em cânceres de bexiga, mas 0% em cânceres de pulmão de células não pequenas). Além disso, alterações de BRAF com substituição de nucleotídeo único envolvendo o mesmo códon podem diferir na dependência de RAS. Além disso, a dependência de RAS de alterações de BRAF não classificadas anteriormente pode ser avaliada”, destacam.
Para os autores, o estudo sugere que a classificação atual de alterações não-V600 do gene BRAF – com base em ensaios in vitro – não prevê com precisão a dependência RAS in vivo. “Cânceres com variantes de BRAF dependentes de RAS com diferentes mecanismos de ativação de RAS sugerem a necessidade de diferentes estratégias de tratamento”, concluem.
Zhao Y et al. sublinham o impacto desses achados na prática clínica. “Nosso estudo tem implicações clínicas notáveis. Primeiro, as alterações de classe 2, mas não de classe 3 do gene BRAF, podem responder a inibidores de MEK, como o trametinibe. Nosso estudo mostrou que algumas alterações de classe 2 em BRAF são na verdade dependentes de RAS e podem se comportar de maneira semelhante às alterações de classe 3, mas não respondem a inibidores de MEK”, analisam.
Os autores também afirmam que a dependência de RAS sugere que usar RAS como alvo terapêutico direto ou indireto – inibindo componentes upstream da via de sinalização pode ser eficaz e que a presença de alterações coexistentes pode afetar a seleção do tratamento. Para aqueles casos sem alterações coexistentes de RAS ou NF1, a inibição da via de sinalização “upstream”, incluindo a inibição de EGFR (receptor de tirosina quinase) e SHP23 podem ser uma estratégia viável. PTPN11 e CBL podem ser potenciais alvos terapeuticos se estiverem mutados. Se co-alterações RAS ou NF1 estiverem presentes, no entanto, inibir a via de sinalização downstream, incluindo RAF (tal como sorafenibe) pode ser mais eficaz.
“Além disso, nosso estudo também sugere que, quando uma alteração no gene BRAF com dependência de RAS é identificada, um teste de reflexo deve ser realizado para avaliar a presença de alterações em genes reguladores de RAS, o que pode levar a uma avaliação mais precisa de vulnerabilidades e estratégias terapêuticas”, refletem.
Papel das alterações de BRAF não-V600 na medicina de precisão
Por Letícia Ferro Leal, pesquisadora do Centro de Pesquisas em Oncologia Molecular do Hospital de Câncer de Barretos
As variantes do gene BRAF localizadas no códon 600 do gene, conhecidas como BRAF V600, já foram bastante exploradas e existem evidências suficientes para concluirmos que estas alterações podem, hoje, mudar o desfecho de um paciente com diagnóstico, por exemplo, de melanoma.
Atualmente, já existem drogas para inibir os efeitos destas alterações de BRAF V600 e bloquear, com sucesso, a progressão dos cânceres positivos para este tipo de alteração. No entanto, todas as outras alterações do gene BRAF já descritas e que se localizam fora deste códon “hotspot” ainda carecem de classificações de patogenicidade e/ou de aplicação na prática clínica como alvos terapêuticos.
Diversos estudos e as bases de dados genômicos indicam uma frequência importante de alterações BRAF não-V600 – que podem variar por tipo de câncer – e reforçam a necessidade de uma atenção especial a estas alterações. Um estudo prévio da Nature, por Nieto et al., avaliou o impacto funcional de uma alteração não-V600 do gene BRAF in vitro e in vivo e identificou como esta alteração contribui para a ativação de RAS levando à formação de adenocarcinoma de pulmão. Além disso, quando coexistente com alterações de RAS (KRAS), o perfil do tumor desenvolvido era ainda mais agressivo.
Neste estudo da JAMA Network, os autores avaliaram as alterações não-V600 mais frequentes do gene BRAF e identificaram o espectro de alterações coexistentes em outros genes da via RAS. Os autores também avaliaram em que tipos tumorais as variantes de BRAF não-V600 são mais frequentes e qual é o padrão de co-ocorrência com alterações em outros genes da via RAS.
As alterações consideradas de classe 1 são mutuamente exclusivas com outras alterações e podem ser consideradas independentes de RAS. Por outro lado, as alterações de classe 2 e 3 podem ser dependentes de RAS, mas associadas a diferentes genes da via de sinalização RAS ou genes reguladores da mesma. E por quê isso importa? Basicamente, se parte da cascata de sinalização que está descontroladamente ativa for bloqueada ou inibida por determinada droga, mas a ativação da cascata era dada por um gene upstream, você poderá não conseguir inibir efetivamente a cascata ativada. Assim, o sucesso do seu tratamento ficará totalmente comprometido.
Se conseguirmos identificar os componentes da via de sinalização que culminam em uma ativação da via RAS como um todo conseguiremos mais sucesso na inibição desta via, que está “descontrolada”. A coexistência de mutações não-V600 de BRAF e mutações de KRAS em câncer de pulmão ou mutações de NRAS em melanoma podem direcionar melhor o tratamento, combinando drogas que possam inibir a cascata de sinalização em níveis diferentes, garantindo uma maior chance de sucesso no tratamento.
O estudo apresenta algumas limitações, como por exemplo, a natureza retrospectiva, a não homogeneidade das ténicas utilizadas para detecção das mutações.
No entanto, este estudo foi um passo importante para que as alterações de BRAF não-V600 deixem de ser “figurantes” e passem a ganhar um papel de destaque na medicina de precisão. Acredito que, muito em breve, estas alterações de BRAF não-V600 auxiliarão na tomada de decisão clínica para melhor direcionamento do tratamento.
Referências:
Zhao Y, Yu H, Ida CM, et al. Assessment of RAS Dependency for BRAF Alterations Using Cancer Genomic Databases. JAMA Netw Open. 2021;4(1):e2035479. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.35479
Nieto, P., Ambrogio, C., Esteban-Burgos, L. et al. A Braf kinase-inactive mutant induces lung adenocarcinoma. Nature 548, 239–243 (2017). - doi:10.1038/nature23297