O tratamento adjuvante oferecido e o tipo tumoral tiveram um impacto significativo na qualidade de vida a longo prazo em sobreviventes de câncer de testículo, mesmo mais de 25 anos após a conclusão do tratamento. Os resultados foram publicados por Heinzelbecker e colegas no Journal of Cancer Survivorship. O oncologista Flavio Mavignier Cárcano (foto) comenta os resultados.
A qualidade de vida foi avaliada em sobreviventes de câncer de testículo tratados entre março de 1976 e dezembro de 2004 (n = 625) utilizando o questionário EORTC-QLQ-C30, incluindo um módulo de câncer testicular. A avaliação foi realizada em dois momentos (2006: taxa de resposta: n = 201/625 (32,2%), seguimento mediano (FU): 12,9 anos (intervalo 1,1–30,9); e 2017: taxa de resposta: n = 95/ 201 (47,3%), mediana FU: 26,2 anos (variação: 13,0–41,2)).
Os sobreviventes de câncer de testículo foram agrupados de acordo com a estratégia de tratamento, tipo tumoral, estágio clínico e grupo de prognóstico. Foram realizadas análises de regressão linear e múltipla, tendo idade e tempo de seguimento como possíveis confundidores.
Resultados
Em comparação com a dissecção de linfonodos retroperitoneais (RPLND), a radioterapia (RT) foi associada a um maior comprometimento da função física (2017: β = − 9,038; t(84) = − 2,03; p = 0,045), função geral (2017: β = − 12,764; t(84) = − 2,00; p = 0,048), função emocional (2006: β = − 9,501; t(183) = − 2,09; p = 0,0. 38) e náusea (2006: β = 6,679; t(185) = 2,70). No entanto, a radioterapia foi associada a um menor comprometimento do prazer sexual (2017: sintomas: β = 26,831; t(64) = 2,66; p = 0,010; funcional: β = 22,983; t(65) = 2,36; p = 0,021).
A quimioterapia (TC), em comparação com a dissecção de linfonodos retroperitoneais, foi associada a um maior comprometimento geral (2017: β = − 16,944; t(84) = − 2,62; p = 0,011) e da função social (2017: β = − 19,160; t(79). = − 2,56; p = 0,012), mais insônia (2017: β = 19,595; t(84) = 2,25; p = 0,027) e maiores preocupações com infertilidade (2017: β = 19,830; t (80) = 2,30; = 0,024).
Em termos de tipo de tumor, em comparação com os sobreviventes de seminoma, os sobreviventes de tumores de células germinativas não seminomatoso (NSGCT) apresentaram comprometimento significativamente menor de náusea (2006: β = − 4,659; t(187) = − 2,17; p = 0,031), perda de apetite (2006: β = − 7,554; t(188) = − 2,77; p = 0,006) e perspectiva futura (2006: β = − 12,146; t(175) = − 2,08; p = 0 0,039). Por outro lado, sobreviver ao NSGCT foi associado a maior comprometimento em termos de problemas sexuais (2006: β = 16,759; t(145) = 3,51; p < 0,001; 2017: β = 21,207; t(63) = 2,73; p = 0,008) e prazer sexual (2017: β = − 24,224; t(66) = − 2,76; p = 0,008).
Em síntese, o tratamento adjuvante aplicado e o tipo tumoral tiveram um impacto significativo na qualidade de vida a longo prazo dos sobreviventes de câncer de testículo. “Tanto a radioterapia como a quimioterapia tiveram um impacto negativo em comparação com os sobreviventes tratados com dissecção de linfonodos retroperitoneais, exceto por questões sexuais. Os sobreviventes de tumores de células germinativas não seminomatoso apresentaram menor comprometimento da qualidade de vida em comparação aos sobreviventes do seminoma, exceto em termos de preocupações sexuais”, destacaram os autores.
“Os resultados são relevantes para informar os aspectos dos efeitos tardios e a longo prazo na qualidade de vida dos sobreviventes de câncer de testículo, oferecer cuidados de suporte, como apoio psico-oncológico ou modificação do estilo de vida, caso seja observada deterioração na qualidade de vida, e evitar ao máximo a toxicidade do tratamento sem comprometer a cura”, concluíram.
O estudo em contexto
Por Flavio Mavignier Cárcano, médico do Grupo Oncoclínicas – Oncobio (Belo Horizonte)
O tumor de testículo é uma doença com altas taxas de cura. No entanto, os tratamentos usados para alcançar esta cura não são isentos de efeitos adversos.
Normalmente, os oncologistas se preocupam muito em mitigar os efeitos adversos durante o tratamento, mas é incomum vermos uma ação efetiva quanto aos efeitos de longo prazo pós-tratamento, que potencialmente impactarão na qualidade de vida dos pacientes. Soma-se a isso o fato de que a maioria dos pacientes curados recebem alta por volta dos 5 anos de seguimento, visto que a recidiva é muito rara após este tempo. Portanto, informações são perdidas quanto aos efeitos a longo prazo.
Um contraponto importante são os programas de sobreviventes, que vemos principalmente em pacientes oncológicos pediátricos, visto que uma vez curados, terão uma expectativa de vida longa e então é fundamental ter um programa de sobreviventes que seja capaz de atenuar e dar suporte aos eventuais efeitos adversos a longo prazo do tratamento. Não é comum vermos nos serviços programas de sobreviventes para pacientes adultos e mesmo os adultos jovens como estes do estudo.
O estudo de Heinzelbecker e col. destaca bem como as nossas decisões terapêuticas podem impactar na qualidade de vida dos pacientes, mesmo muitos anos depois. Diferenças entre abordagem cirúrgica e de tratamento sistêmico devem estar nas discussões multidisciplinares para a tomada de decisão, levando em conta este potencial impacto na qualidade de vida a longo prazo. Acredito que programas de sobreviventes para pacientes como estes são de fundamental importância.
Entretanto, é importante ter cuidado com a interpretação de estudo de longo seguimento que perpassam por mudanças de técnicas cirúrgicas, radioterápicas e de quimioterapia, que sempre guardam algum viés de seleção que merece ser considerado.
Mas a principal mensagem deste estudo é que para pacientes tão jovens como aqueles que desenvolvem câncer de testículo e que são curados, precisamos ter um olhar a longo prazo no momento das tomadas de decisão terapêutica, levando em consideração toda necessidade de suporte antes, durante e mesmo muitos anos depois do tratamento.
Referência: Heinzelbecker, J., Kaßmann, K., Ernst, S. et al. Long-term quality of life of testicular cancer survivors differs according to applied adjuvant treatment and tumour type. J Cancer Surviv (2024). https://doi.org/10.1007/s11764-024-01580-9