A ressecção cirúrgica é a pedra angular do tratamento curativo no câncer gástrico, mas a abordagem ideal permanece obscura. Revisão sistemática de Naqvi et al. publicada no Journal of Surgery Oncology mostra que evidências de baixo valor ainda dificultam o consenso sobre o manejo cirúrgico ideal. “Esta é a primeira revisão a avaliar os principais resultados de ensaios cirúrgicos no câncer gástrico, fornecendo um panorama abrangente dos últimos 25 anos”, destacam os autores. O médico Felipe José Fernández Coimbra (foto) analisa os principais achados.
O câncer gástrico continua a ser uma das principais causas de mortalidade relacionada ao câncer em todo o mundo, com mais de um milhão de novos casos diagnosticados globalmente em 2020.
Neste estudo de revisão, foram pesquisadas as bases de dados da Evidence Based Medicine Reviews, MEDLINE, EMBASE e CINAHL compreendendo ensaios clínicos randomizados (ECR) e revisões sistemáticas de ensaios clínicos sobre abordagens cirúrgicas no câncer gástrico durante os anos de 1995 a 2021, além de protocolos de ensaios em andamento e futuros.
A análise incluiu 99 artigos de 64 estudos e 69 protocolos de ensaios. Os 64 estudos incluídos na revisão foram publicados entre 1995 e 2021, realizados principalmente na Ásia (80%), incluindo 22 no Japão, 18 na China, 10 na Coreia do Sul e 1 em Taiwan. Nove estudos foram realizados na Europa, incluindo quatro na Itália, três na Holanda e um no Reino Unido.
Os resultados mostram que nenhum estudo relatou todos os resultados principais: a média relatada por ensaio foi 4 (intervalo interquartil: 2). Eventos adversos “sérios” foram relatados por 98% dos trabalhos analisados, remoção completa do tumor por 85% e morte relacionada à cirurgia por 74%. Resultados que são relevantes para os pacientes foram os menos relatados: qualidade de vida (22%) e efeitos nutricionais (15%).
“Resultados criticamente importantes são mal relatados na literatura”, concluem os autores, sinalizando a importância de novos estudos.
Nos últimos anos, abordagens minimamente invasivas, como a cirurgia laparoscópica e robótica, surgiram como opções viáveis e seguras. “Agora, o manejo cirúrgico varia tanto pela abordagem (aberta, laparoscópica e robótica), quanto pela extensão (gastrectomia parcial ou total, grau de linfadenectomia e qualquer ressecção de órgão auxiliar) e cada abordagem traz suas próprias complicações operatórias a curto e longo prazo”, destacam os autores, reforçando a necessidade de evidências de alta qualidade para determinar a abordagem cirúrgica ideal. “A heterogeneidade na literatura dificulta isso, levando a uma carga significativa de pesquisa e a pouco consenso”, analisam.
A íntegra do estudo está disponível em acesso aberto.
Jornada do câncer gástrico e a importância da cirurgia para cada paciente
Por Felipe Coimbra, Head do Centro de Referência em Oncologia Digestiva Alta e da Cirurgia Abdominal do A.C.Camargo Cancer Center
Como cirurgião especializado no tratamento do câncer gástrico considero esta revisão sistemática de Naqvi, Matias e Al-Khaffaf uma peça-chave para entender as transformações e desafios da área. Com a análise dos ensaios clínicos ao longo de 25 anos é possível vislumbrar a evolução dos resultados e a necessidade de padronização nos registros de desfechos, crucial para avaliar a eficácia e direcionar o futuro da pesquisa clínica.
Esse estudo reforça o papel indispensável da atualização com os progressos técnicos e as diretrizes de tratamento, colaborando para uma terapia integrada e multidisciplinar do câncer gástrico, tendo, desde as décadas de 1990, as gastrectomias como o pilar do tratamento curativo. Porém, com ganho significativo de espaço para as abordagens mais personalizadas e multidisciplinares atuais.
As terapias adjuvantes e neoadjuvantes, as técnicas minimamente invasivas, a cirurgia robótica, além do crescente conhecimento molecular do câncer gástrico mudaram o panorama do tratamento, levando a um aumento expressivo da sobrevida e melhora da qualidade de vida dos pacientes. Essa evolução destaca a importância do encaminhamento ágil para avaliação cirúrgica e de tratamentos inovadores, como a imunoterapia.
Neste artigo, o papel da cirurgia como tratamento curativo primário é enfatizado, sendo essencial referenciar pacientes oportuna e adequadamente, considerando que o plano multidisciplinar deve ser discutido no início da avaliação multimodal. A expertise e o volume cirúrgico em realizar cirurgias complexas visam não apenas o tratamento eficaz, mas também a manutenção da qualidade de vida pós-operatória.
O estudo sugere ainda que os desfechos reportados frequentemente não refletem as prioridades dos pacientes, principalmente em relação à qualidade de vida e efeitos nutricionais, apontando para um desalinhamento potencial entre as prioridades de pesquisa e as necessidades dos pacientes. Medidas de desfecho relatadas pelos pacientes (PROMs) como o questionário de qualidade de vida relacionada à saúde EORTC QLQ-STO22, por exemplo, são fundamentais, mas ainda subutilizadas. No Brasil a carência destes estudos é ainda maior.
Avanços como o sistema PROMIS, com sua tecnologia de testes adaptativos computadorizados, prometem aprimorar a precisão e eficiência da pesquisa, enfatizando a necessidade de dados claros sobre desfechos centrados no paciente, tanto para a tomada de decisão clínica quanto para o consentimento de procedimentos complexos.
Do ponto de vista histórico traço um paralelo do que se tem observado na evolução do tratamento do câncer gástrico no. Brasil e no mundo nas últimas décadas, e que tem sido significativa, marcada por várias mudanças:
- 1990s: A cirurgia era a principal opção de tratamento, com técnicas limitadas a gastrectomias parciais ou totais. O foco estava principalmente na remoção física do tumor.
- Início dos anos 2000: O surgimento de terapias adjuvantes, como quimioterapia e radioterapia, antes e/ou depois da cirurgia, começou a melhorar os resultados do tratamento.
- Meio dos anos 2000 até 2010: Avanços nas técnicas cirúrgicas minimamente invasivas, como a laparoscopia, começaram a reduzir a morbidade associada à cirurgia e melhorar a recuperação dos pacientes.
- 2010 em diante: A integração de terapias direcionadas, imunoterapias e o desenvolvimento da cirurgia robótica do câncer gástrico, permitindo um tratamento mais assertivo no manejo do câncer gástrico e a personalização do tratamento, melhorando a sobrevida em casos selecionados (com acesso ainda muito limitado no Brasil). A compreensão molecular do câncer gástrico também cresceu, influenciando a seleção de terapias.
- Últimos anos: O foco tem se deslocado para a precisão da medicina, incluindo a identificação de biomarcadores que podem prever a resposta ao tratamento e a adoção de abordagens multidisciplinares para o cuidado do paciente.
Em resumo, este estudo reflete a jornada do câncer gástrico e a importância da cirurgia para cada paciente, dentro do espectro de tratamento, sublinhando a necessidade de evolução constante no registro e na análise de desfechos para impulsionar o cuidado ao paciente. Reflete ainda o conhecimento e expertise necessários para que médicos de todas as especialidades possam conhecer as principais informações e encaminhar precocemente seus pacientes com confiança ao tratamento mais adequado, sabendo que estão apoiados pela melhor prática baseada em evidências.
Referência: Naqvi A, Matias N, Al-Khaffaf B. Reporting of core outcomes in gastric cancer surgery trials over the past 25 years (systematic review). J Surg Oncol. 2024; 1-15. doi:10.1002/jso.27613