Estudo publicado na Lancet1 buscou identificar o risco a longo prazo de doença cardiovascular em sobreviventes de 20 tipos de câncer utilizando dados de registros eletrônicos em grande escala de vários bancos de dados vinculados do Reino Unido. Os resultados demonstraram que sobreviventes da maioria dos tumores têm risco aumentado a médio e longo prazo para uma ou mais doenças cardiovasculares em comparação com a população em geral, com variações substanciais entre os órgãos acometidos pela doença. A cardio-oncologista Ariane Vieira Scarlatelli Macedo (foto), médica do Centro Paulista de Oncologia/Grupo Oncoclínicas e coordenadora do Comitê de Trombose e Hemostasia em Câncer da Sociedade Brasileira de Trombose e Hemostasia (SBTH) comenta o trabalho.
O número de sobreviventes de câncer em todo o mundo cresceu substancialmente para mais de 16 milhões de indivíduos nos EUA. Mais de 65% dos adultos diagnosticados com câncer vivem por pelo menos 5 anos após o diagnóstico, e um número crescente vive por mais tempo.2 Embora mais indivíduos estejam curados de câncer ou estejam vivendo mais com câncer, evidências têm surgido de que os sobreviventes de câncer estão em maior risco de morte por doenças cardiovasculares.
Algumas terapias como antraciclinas, trastuzumabe e radiação torácica, são conhecidas há décadas por aumentar o risco cardiovascular. Vários novos tratamentos, como imunoterapia, inibidores de tirosina quinase, inibidores do proteassoma e terapias antiestrogênicas também demonstraram causar disfunção endotelial e resultar em hipertensão e aumento de eventos cardiovasculares.3
Além disso, evidências crescentes mostram uma sobreposição nos fatores de risco entre o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e câncer, e muitos indivíduos diagnosticados com câncer apresentam fatores de risco cardiovascular, como hipertensão, idade avançada, uso de tabaco e diabetes, antes de iniciarem o tratamento antineoplásico.4
Métodos e resultados
Os pesquisadores utilizaram dados de cuidados primários, hospitalares e de registro de câncer do UK Clinical Practice Research Datalink de sobreviventes (18 anos ou mais) dos 20 cânceres mais comuns, vivos 12 meses após o diagnóstico, e compararam com controles sem histórico de câncer, pareados por idade, sexo e prática geral.
Entre 1° de janeiro de 1990 e 31 de dezembro de 2015, 126.120 indivíduos com diagnóstico de câncer ainda sendo acompanhados pelo menos um ano após o diagnóstico foram identificados e pareados com 630.144 controles. Após exclusões, 108.215 sobreviventes de câncer e 523.541 controles foram incluídos nas análises principais. Dos sobreviventes de câncer, 51 541 (47,6%) eram homens e 56 674 (52,4%) eram mulheres; dos controles, 245.760 (46,9%) eram homens e 277.781 (53,1%) eram mulheres; e ambos os sobreviventes e controles tinham uma idade mediana de 67 anos (IQR 58-76).
O risco de tromboembolismo venoso foi elevado em sobreviventes de 18 dos 20 tipos de câncer avaliados em comparação com os controles; as razões de risco ajustadas (HRs) variaram de 1,72 (95% CI 1,57 – 1,89) em pacientes após o câncer de próstata a 9,72 (5,50 – 17,18) após o câncer de pâncreas. A HR diminuiu com o tempo, mas permaneceu elevada mais de 5 anos após o diagnóstico.
Foi observado aumento dos riscos de insuficiência cardíaca ou cardiomiopatia em pacientes após dez de 20 casos de câncer, incluindo hematológicos (HR ajustado 1,94, 1,66 – 2,25, com linfoma não Hodgkin; 1,77, 1,50 – 2,09, com leucemia; e 3,29, 2,59 – 4,18, com mieloma múltiplo), esofágico (1,96, 1,·46 – 2,64), pulmão (1,82, 1,52 – 2,17) renal (1,73, 1,38 – 2,17) e ovário (1,59, 1,19 – 2,12). Riscos elevados de arritmia, pericardite, doença arterial coronariana, acidente vascular cerebral e doença cardíaca valvular também foram observados em vários tipos de câncer, incluindo malignidades hematológicas.
As razões de risco para insuficiência cardíaca ou cardiomiopatia e tromboembolismo venoso foram maiores em pacientes sem doença cardiovascular prévia e em pacientes mais jovens. No entanto, os riscos de excesso absoluto foram geralmente maiores com o aumento da idade. O aumento dos riscos desses desfechos pareceu mais pronunciado em pacientes que receberam quimioterapia.
A análise é limitada pelo fato de que eles usam dados de registro que não fornecem detalhes sobre tratamentos de câncer, incluindo quimioterapias específicas, doses de quimioterapia e doses e campos de radiação. Além disso, o conjunto de dados não possui detalhes sobre outros fatores de risco cardiovascular, incluindo hiperlipidemia, dieta, ingestão de álcool, exercícios, idade da menopausa e história familiar de doença cardiovascular, todos fatores de risco bem conhecidos para doença cardiovascular.
Apesar dessas limitações, o tamanho e a amplitude da fonte de dados vinculada permitiram dados e poder estatístico suficientes para fazer uma análise abrangente do risco cardiovascular a longo prazo em sobreviventes de 20 tumores mais prevalentes.
“O estudo demonstra que as terapias contra o câncer, particularmente a quimioterapia, desempenham um papel proeminente no risco cardiovascular que pode ser semelhante ao do uso do tabaco e ao aumento do índice de massa corporal”, observam os autores.
Em editorial5 publicado na mesma edição, Anne Blaes e Chetan Shenoy argumentam que o trabalho reforça outros estudos que demonstram aumento no risco de doenças cardiovasculares em sobreviventes de câncer, e representam um forte argumento para investigar se a inclusão do câncer em ferramentas de previsão de risco, além dos tradicionais fatores de risco para a previsão do risco de doença cardiovascular, agregaria valor incremental à população em geral. “Enquanto isso, os médicos devem considerar o câncer, e especialmente a quimioterapia, como um fator de risco para doenças cardiovasculares ao discernir os riscos individuais dos pacientes para orientar as intervenções preventivas”, concluem.
O estudo foi financiado pela Wellcome Trust and Royal Society.
Estudo reforça necessidade de acompanhamento após o tratamento oncológico
Por Ariane Vieira Scarlatelli Macedo
Os avanços no tratamento do câncer geraram um grupo crescente de sobreviventes. Este estudo reforça os dados que demonstram que há um aumento no risco, mesmo a longo prazo, de doenças cardiovasculares (DCV) após o diagnóstico do câncer. Este risco é impulsionado pelos efeitos colaterais do tratamento e pelo potencial impacto do câncer.
Os dados do trabalho sugerem que o tratamento oncológico, particularmente a quimioterapia, pode adicionar mais risco para o surgimento de eventos cardiovasculares do que os fatores de risco comuns ao câncer e às DCV.
Nos últimos anos, os guidelines têm reforçado a recomendação para que a equipe médica ajude a promover um estilo de vida saudável entre os sobreviventes de câncer.
É importante reforçar que a lacuna no fornecimento de aconselhamento direcionado para promoção da saúde a sobreviventes de câncer prejudicará a saúde destes indivíduos a longo prazo. Devemos pensar em soluções em um nível mais abrangente que incluam fornecimento de promoção da saúde por meio de equipes multidisciplinares para o acompanhamento do paciente após o término do tratamento oncológico.
Referências:
1 - Medium and long-term risks of specific cardiovascular diseases in survivors of 20 adult cancers: a population-based cohort study using multiple linked UK electronic health records databases - Helen Strongman, MSc, Alexander R Lyon, PhD et al. - Open Access - Published: August 20, 2019 - DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)31674-5
2 - Miller KD, Nogueira L, Mariotto AB et al. - Cancer treatment and survivorship statistics, 2019. - CA Cancer J Clin. 2019; (published online June 11.) - DOI:10.3322/caac.21565
3 - Blaes AH, Thavendiranathan P, Moslehi J - Cardiac toxicities in the era of precision medicine: underlying risk factors, targeted therapies, and cardiac biomarkers. - Am Soc Clin Oncol Educ Book. 2018; 38: 764-774
4 - Koene RJ, Prizment AE, Blaes A, Konety SH - Shared risk factors in cardiovascular disease and cancer. - Circulation. 2016; 133: 1104-1114
5 - Is it time to include cancer in cardiovascular risk prediction tools? - Anne H Blaes, Chetan Shenoy - Open AccessPublished:August 20, 2019DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)31886-0