Onconews - Risco individual e rastreamento do câncer oral

daniel cohen 2019 bxReanálise do Kerala Oral Cancer Screening mostrou que o rastreamento baseado no risco individual é eficaz e trouxe redução de 27% na mortalidade por câncer oral, alcançando 29% (HR = 0,71) em usuários de tabaco e/ou álcool. Os resultados expressam a prova de princípio da eficiência dessa estratégia de screening e foram publicados 15 de janeiro por Cheung et al. no Journal of Clinical Oncology (JCO). Quem comenta é o estomatologista Daniel Cohen (foto), pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA).

Este ensaio clínico randomizado incluiu três rodadas trienais de inspeção visual (sete grupos, n = 96.516) versus padrão de atendimento (seis grupos, n = 95.354) e até 9 anos de acompanhamento. Os pesquisadores desenvolveram um modelo de predição de risco baseado em regressão de Cox para a incidência de câncer, que foi aplicado nos braços de análise por intenção de tratar (ITT). Foram calculadas as taxas de risco relativo (HRs) e absoluto, (RDs) para dimensionar a eficácia desta estratégia de triagem na mortalidade por câncer oral.

Resultados

A mortalidade por câncer oral foi reduzida em 27% nos braços de triagem versus controle (HR = 0,73; IC de 95%, 0,54 a 0,98), alcançando redução de 29% em usuários de tabaco e / ou álcool (HR = 0,71; 95 % CI, 0,51 a 0,99). Esta eficácia relativa foi semelhante em todos os quartis de risco de câncer oral (interação de P = 0,59); consequentemente, a eficácia absoluta também cresceu refletindo a sensibilidade do modelo: a RD no quartil de risco mais baixo (Q1)= 0,5 / 100.000 contra 13,4 / 100.000 no quartil mais alto (Q4),  interação de P = 0,059.  Entre usuários de tabaco e / ou álcool: Q1 RD = 1,0 / 100.000 versus Q4 = 22,5 / 100.000; P trend = 0,026.

“Em uma população semelhante a do estudo de Kerala, o rastreamento de 100% dos indivíduos proporcionaria redução de 27,1% na mortalidade por câncer oral no número necessário para rastreamento (NNS) = 2.043”, sustentam os autores. Cheung et al. também descrevem que entre usuários de tabaco e / ou álcool sem estratificação de risco adicional, a estratégia teria eficiência ainda maior (43,4% rastreados, com 23,3% de redução da mortalidade por câncer oral em NNS = 1.029). Entre os 50% de usuários de tabaco e / ou álcool de alto risco, a eficiência do modelo de previsão de risco atingiria um patamar superior, mantendo a alta sensibilidade do programa (21,7% rastreados para redução de mortalidade por câncer oral de 19,7% no NNS = 610).

“No estudo de Kerala, a eficácia do rastreamento do câncer oral foi maior em indivíduos com maior risco de câncer oral. Esses resultados fornecem a prova do princípio de que o screening do câncer oral baseado no risco pode aumentar substancialmente a eficiência dos programas de rastreamento”, concluem os autores. 

Screening e mudança de paradigma na epidemiologia no câncer bucal

Por Daniel Cohen Goldemberg, estomatologista, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA)

Nos Estados Unidos da América, entre 1973 e 2012 já foi constatada elevação na incidência de câncer de língua (localização mais comum do câncer de boca) entre homens e mulheres brancas2.

Há algum tempo, os países desenvolvidos têm apresentado uma redução drástica do câncer oral tradicional relacionado ao tabaco em homens mais velhos, frequentemente potencializado pelo etilismo, e um aumento em jovens, por vezes mulheres, com muitos casos de câncer bucal em adultos jovens. E não estamos falando do carcinoma orofaríngeo HPV-positivo. Entender o que está causando esta mudança na epidemiologia do câncer bucal se trata de um grande desafio atualmente3.

A incidência global de câncer de boca entre 1990 e 2017 aumentou em mulheres abaixo de 50 anos e em países de baixa e média renda4. O banco mundial classifica o Brasil como um país de renda média alta, e a Índia como um país de renda média baixa, ambos se enquadrando nesta possível estatística.

Estamos concluindo um estudo que sugere algo neste sentido no Brasil (dados ainda não publicados); no entanto, em termos de epidemiologia do câncer de boca mais comum, o Brasil ainda apresenta aquele tumor tradicional associado ao tabagismo e etilismo em homens e com idade mais avançada5. Seguindo esta linha de raciocínio, o Brasil, em teoria, poderia se beneficiar com estes achados que poderiam encorajar novos estudos de screening regionais e nacionais.

O colega pesquisador Luiz Claudio Santos Thuler, do INCA e da UNIRIO, alerta que segundo a IARC, a taxa de incidência ajustada de câncer de boca no Brasil é duas vezes e meia menor que a da Índia. Enquanto no Brasil temos 3,9 por 100 mil homens e mulheres, na Índia a doença acomete 9,8 por 100 mil homens e mulheres (a IARC considera os códigos C00-06 da CID 10) 6, fato este que complicaria ainda mais a questão da custo-efetividade de uma estratégia de vigilância epidemiológica.

Quanto à "redução de 27% na mortalidade por câncer oral, alcançando 29% (HR = 0,71) em usuários de tabaco e/ou álcool", os intervalos de confiança superiores são muito próximos a 1, ou seja, há 95% de chance que a redução da mortalidade seja tão alta quanto 46% ou tão pequena quanto 2% (na população estudada foi de 27%, ou seja, HR de 73%). Esse IC amplo aponta para um "n" pequeno do estudo para testar a hipótese em questão. Portanto, até este momento devemos continuar nos atendo aos consensos em vigência das forças tarefa americana e canadense, às recomendações da OMS e dos governos inglês, francês e até do próprio Brasil, de que não há comprovação científica para vigilância epidemiológica do câncer bucal. O que não impede de mantermos a esperança quanto à perspectiva de programas de rastreamento direcionados a populações de alto risco no futuro, como já vem ocorrendo no câncer de pulmão (para tabagistas pesados, por exemplo), apesar de não se enquadrar como "rastreamento populacional", mas sim um "rastreamento seletivo".

Pensando como estomatologista, por mais vontade que tenha de que este artigo possa representar uma mudança de paradigma, temos que manter os pés no chão quanto ao assunto de screening de câncer bucal, especialmente se levarmos em conta que esta mudança de paradigma na epidemiologia desse tipo de tumor para pacientes mais jovens, mulheres e não necessariamente fumantes pode estar chegando por aqui.

Referências:

1 - Risk-Based Selection of Individuals for Oral Cancer Screening - Li C. Cheung, Kunnambath Ramadas, Richard Muwonge, Hormuzd A. Katki, Gigi Thomas, Barry I. Graubard, Partha Basu, Rengaswamy Sankaranarayanan, Thara Somanathan, and Anil K. Chaturvedi - DOI: 10.1200/JCO.20.02855 Journal of Clinical Oncology

2 - Tota JE, Anderson WF, Coffey C, et al. Rising incidence of oral tongue cancer among white men and women in the United States, 1973–2012. Oral Oncol. 2017;67:146-152. doi:10.1016/j.oraloncology.2017.02.019

3 - Miller C, Shay A, Tajudeen B, Sen N, Fidler M, Stenson K. Clinical features and outcomes in young adults with oral tongue cancer. Am J Otolaryngol. 2019;40(1):93-96. doi:10.1016/j.amjoto.2018.09.022

4 - Du M, Nair R, Jamieson L, Liu Z, Bi P. Incidence Trends of Lip, Oral Cavity, and Pharyngeal Cancers: Global Burden of Disease 1990-2017. J Dent Res. 2020 Feb;99(2):143-151. doi: 10.1177/0022034519894963. Epub 2019 Dec 24. PMID: 31874128.

5 - Cohen Goldemberg D, de Araújo LHL, Antunes HS, de Melo AC, Santos Thuler LC. Tongue cancer epidemiology in Brazil: incidence, morbidity and mortality. Head Neck. 2018;(October 2017). doi:10.1002/hed.25166

6 - International Agency for Research on Cancer (IARC), 2021, Estimated number of new cases in 2020, worldwide, both sexes, all ages.