Estudo canadense randomizado de fase III avaliou a não-inferioridade da transfusão de glóbulos vermelhos, considerando limiares transfusionais controlados versus liberais em pacientes com neoplasias hematológicas. Os resultados estão em artigo de Jason Tay e colegas, publicado no Journal of Clinical Oncology. “É um estudo muito bem elaborado que tenta estabelecer um limiar mínimo, restritivo, de níveis de hemoglobina para indicar a transfusão”, avalia Ângelo Maiolino (foto), professor de hematologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador de hematologia do Americas Centro de Oncologia Integrado, no Rio de Janeiro.
Este estudo de não-inferioridade foi realizado em quatro centros canadenses e randomizou pacientes com neoplasias hematológicas que necessitaram de transfusão de sangue para receber uma estratégia de transfusão restritiva (hemoglobina [Hb], 70 g/L) ou liberal (limiar Hb, 90 g/L) entre o dia 0 e o dia 100. A margem de não-inferioridade considerou uma diferença absoluta de 12% na avaliação funcional antes e depois do transplante de medula óssea, medida pelo escore Functional Assessment of Cancer Therapy-Bone Marrow Transplant (FACT-BMT).
O endpoint primário foi a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS), medida pelo escore FACT-BMT no dia 100. Endpoints secundários consideraram qualidade de vida pelo escore do FACT-BMT no início do estudo (baseline) e nos dias 7, 14, 28, 60 e 100, além de avaliar a mortalidade relacionada ao transplante; tempo de internação hospitalar; internações em unidades de terapia intensiva; doença aguda do enxerto contra o hospedeiro; escore de toxicidade de Bearman; síndrome de obstrução sinusoidal; infecções graves; escala de sangramento da OMS e reações associadas à transfusão.
Resultados
Um total de 300 pacientes adultos foram randomizados para o tratamento de estratégia restritiva ou de estratégia liberal, entre 2011 e 2016. Os níveis médios de Hb pré-transfusão foram de 70,9 g/L no grupo de transfusão restritiva e de 84,6 g/L no grupo de transfusão liberal (P, 0,0001). O número de hemácias transfundidas foi menor no grupo de transfusão restritiva do que no grupo de transfusão liberal (média, 2,73 unidades [desvio padrão, 4,81 unidades] v 5,02 unidades [desvio padrão, 6,13 unidades]; P = 0,0004).
O grupo de transfusão restritiva apresentou um escore FACT-BMT mais alto no dia 100 (diferença de 1,6 pontos; IC 95%, 22,5 a 5,6 pontos), que não foi inferior ao grupo que recebeu transfusão liberal. Não houve diferenças significativas nos resultados clínicos entre a duas estratégias de transfusão.
“A transfusão de hemácias geralmente utiliza só o valor da hemoglobina como base para transfundir, e muitas vezes essa transfusão é feita com níveis de hemoglobina muito elevados, sem uma indicação muito clara. Agora, esse estudo demonstra claramente que não houve inferioridade para o grupo que recebeu a transfusão restritiva. Isso pode ter repercussões na prática transfusional dos pacientes com neoplasias hematológicas”, observa Maiolino. “É claro que se o paciente não tem comorbidades, não está sintomático, mesmo com níveis de hemoglobina mais altos a transfusão deve ser realizada. Mas se o paciente está assintomático, não há necessidade de realizar a transfusão liberal, de 90 g/L”, conclui.
Referência: Tay, J., Allan, D. S., Chatelain, E., Coyle, D., Elemary, M., Fulford, A., … Fergusson, D. (2020). Liberal Versus Restrictive Red Blood Cell Transfusion Thresholds in Hematopoietic Cell Transplantation: A Randomized, Open Label, Phase III, Noninferiority Trial. Journal of Clinical Oncology, JCO.19.01836. doi:10.1200/jco.19.01836