Bottom line
Especificamente tratando-se das neoplasias ginecológicas, diferentes procedimentos podem ser adotados com o objetivo de preservar a fertilidade.
Entre homens e mulheres, as realidades são completamente distintas em relação à preservação da fertilidade durante e após o tratamento do câncer. O uso do banco de esperma, ainda que difícil nos pacientes homens pré-púberes, é uma opção fácil para meninos já na puberdade e homens em tratamento oncológico adequadamente aconselhados. De forma oposta, a obtenção e manutenção de ovos maduros de mulheres jovens é algo muito mais complexo, invasivo e que demanda maior tempo (Schover et al., 1999; Woodruff, 2010)
No tratamento do câncer do colo útero, a traquelectomia radical é uma opção adequada a casos selecionados. Nas pacientes em que o tratamento envolve essencialmente a radioterapia da pelve, pode-se considerar a transposição ovariana como alternativa à falência ovariana precoce e, posteriormente, como possibilidade de coleta de oócitos visando fertilização in vitro em barriga solidária (Koliopoulos et al., 2004).
Para as pacientes com tumores ovarianos tipo germinativo e as com borderline com desejo de preservar a fertilidade, deve-se oferecer estadiamento cirúrgico com manutenção do útero e, sempre que possível, do ovário contralateral. Para os tumores epiteliais invasivos, é necessário aconselhamento genético e estadiamento cirúrgico, cuja extensão depende de fatores como o tipo histológico do tumor
Autores: Bruno Roberto Braga Azevedo e Audrey Tieko Tsunoda
Resumo:
O tratamento oncológico pode resultar em subfertilidade ou infertilidade através da remoção das gônadas ou dano permanente às células germinativas. Os riscos estão relacionados à idade do paciente no momento do tratamento, bem como à dose da terapia empregada, local e modalidade do tratamento.
A busca pela preservação da fertilidade deve basear-se no conceito de multidisciplinaridade, aliando recursos clínicos focados no desenvolvimento de métodos para manutenção ou recuperação da capacidade reprodutiva em pacientes jovens diagnosticados com câncer. O profissional envolvido com o tratamento do paciente jovem sob risco de infertilidade deve ter conhecimento sobre potenciais efeitos do tratamento na capacidade reprodutiva futura, opções disponíveis para preservação da fertilidade e aconselhamento a respeito de paternidade / maternidade após tratamento oncológico.
As estratégias multidisciplinares de preservação da fertilidade têm sido cada vez mais incorporadas aos centros oncológicos. Com os avanços tecnológicos, a maior compreensão do comportamento dos tumores e do tratamento, além do aumento significativo na sobrevida dos pacientes, muitos recursos estão disponíveis. A preservação da fertilidade envolve questões de significativo impacto emocional e que devem ser fortemente consideradas quando delineado o plano terapêutico especializado.
Palavras-chave, oncofertilidade,
Introdução
A cada ano, aproximadamente 1.9 milhão de pessoas são diagnosticadas com câncer nos Estados Unidos. Habitualmente associado a pessoas de idade avançada, as estatísticas recentes mostram que, daquele número, 9% ocorrem em idades inferiores a 45 anos. As formas de neoplasia maligna mais frequentemente encontradas nos americanos com idade entre 20 e 44 anos são mama, linfoma, pele (excluindo carcinoma basocelular e escamoso) e leucemia. Dentro desse contexto, observa-se maior taxa de sucesso terapêutico baseada em tratamentos mais avançados e agressivos que, por sua vez, também estão relacionados a um número maior de casos de infertilidade, esterilidade ou menopausa precoce em pacientes jovens (Jeruss e Woodruff, 2009). A necessidade de tratamento curativo efetivo, mas menos mórbido para esse grupo de pacientes jovens, é mandatória. Assim, ao longo dos últimos 20 anos, observamos o aumento significativo de estudos avaliando os potenciais riscos e benefícios de opções terapêuticas preservadoras de fertilidade (Farthing, 2006).
Apesar do crescente interesse dos pacientes oncológicos pela manutenção da fertilidade e do fato de que até três quartos dos homens e mulheres em tratamento com menos de 35 anos de idade não possuem filhos (Schover et al., 1999), ainda existem barreiras à implementação do conceito de infertilidade de forma plena. Entre essas, temos as dificuldades estruturais e científicas.
A busca pela preservação da fertilidade deve basear-se no conceito de multidisciplinaridade, aliando recursos clínicos focados no desenvolvimento de métodos para manutenção ou recuperação da capacidade reprodutiva em pacientes jovens diagnosticados com câncer. O manejo desses pacientes é complexo e deve incluir sempre a ampla exposição das informações ao paciente a ser tratado. O profissional envolvido no tratamento do jovem sob risco de infertilidade deve estar perfeitamente familiarizado com o conceito de infertilidade. Assim, é mandatório que oncologistas clínicos, cirurgiões oncológicos, radioterapeutas, ginecologistas, urologistas, hematologistas e pediatras tenham formação adequada que possibilite orientação clínica apropriada acerca do diagnóstico em questão. Incluem-se conhecimentos sobre potenciais efeitos do tratamento na capacidade reprodutiva futura, opções disponíveis para preservação da fertilidade e aconselhamento a respeito de paternidade / maternidade após tratamento oncológico.
Entre homens e mulheres, as realidades são completamente distintas em relação a essa abordagem. O uso do banco de esperma, ainda que difícil nos pacientes homens pré-púberes, é uma opção fácil para meninos já na puberdade e homens em tratamento oncológico adequadamente aconselhados. De forma oposta, a obtenção e manutenção de ovos maduros de mulheres jovens é algo muito mais complexo, invasivo e que demanda maior tempo (Schover et al., 1999; Woodruff, 2010).
De forma primordial, deve-se definir o potencial deletério de cada tratamento na fertilidade futura; levantar as opções disponíveis e adequadas de preservação da fertilidade para cada paciente de forma específica; questões acerca da gestação propriamente dita após o tratamento oncológico e questões ainda sem respostas definitivas também devem ser consideradas, inclusive quem deve financiar? Quem define quais são os quadros muito graves para se considerar oncofertilidade? Qual a idade em que a preservação da fertilidade deve ser discutida?
A Sociedade Americana de Oncologia Clínica, de forma muito prática, indica que devem existir recomendações iniciais para esse perfil de paciente nos serviços de referência. Sendo assim, o profissional de saúde deve: discutir preservação de fertilidade com todos os pacientes em idade reprodutiva (e com os pais ou responsáveis nos casos que envolvam crianças ou adolescentes) se infertilidade é um risco do tratamento em questão; encaminhar os pacientes com interesse em preservação da fertilidade a especialistas em reprodução; definir se a manutenção da fertilidade pode ter algum impacto no tratamento oncológico; oferecer documentação acerca desse tema no prontuário médico e, de forma muito importante, orientar para que o processo de preservação da fertilidade seja buscado de forma mais rápida possível, idealmente, antes do início da terapia oncológica.
O tratamento oncológico pode resultar em subfertilidade ou infertilidade através da remoção das gônadas ou dano permanente às células germinativas. Os riscos estão relacionados à idade do paciente no momento do tratamento, bem como à dose da terapia empregada, local e modalidade do tratamento.
Especificamente tratando-se das neoplasias ginecológicas em relação à fertilidade, existe uma gama enorme de procedimentos que podem ser adotados com o intuito de diminuir a morbidade terapêutica. Isso toma uma importância ainda maior quando observamos que, de forma geral, as mulheres contemporâneas estão postergando a gestação. No Reino Unido, anualmente, mais de 1000 mulheres com câncer de colo útero, 120 com câncer endometrial e mais de 500 com neoplasia maligna do ovário terão menos de 45 anos ao diagnóstico (Farthing, 2006).
No tratamento do câncer do colo útero nesse grupo de pacientes jovens, de forma mais popular a partir das publicações de Daniel Dargent em 1994, temos a traquelectomia radical como opção adequada a casos selecionados. A maioria dos autores recomenda que a técnica seja destinada a pacientes com lesões inferiores a 2 cm de diâmetro (FIGO 2018 IB1), sendo uma opção inadequada para doença metastática (Xu et al., 2011; Dargent et al., 2002; Plante et al., 2011). Nas lesões microscópicas muito iniciais (IA1 com invasão linfovascular e IA2), a incidência de doença metastática linfonodal é extremamente rara, assim como o comprometimento parametrial, e tanto a traquelectomia radical quanto a conização com avaliação linfonodal têm sido estudadas neste contexto (Cannistra e Niloff, 1996; Plante, 2000; Stehman et al.,2003). Nas pacientes em que o tratamento envolve de forma essencial a radioterapia da pelve, pode-se considerar a transposição ovariana como alternativa à falência ovariana precoce e, posteriormente, como possibilidade de coleta de oócitos visando fertilização in vitro em barriga solidária (Koliopoulos et al., 2004). Mais recentemente, alvo de pesquisa em andamento, é possível oferecer procedimento de transposição uterina minimamente invasiva. Esta técnica consiste no reposicionamento do útero e anexos no abdome superior da paciente, vascularizado pelos ligamentos infundíbulo-pélvicos, pelo tempo que realizará radioterapia pélvica (Ribeiro et al., 2019).
Para pacientes jovens, com neoplasia de endométrio classificadas como IA, tipo histológico endometrióide e sem invasão miometrial, há a possibilidade de preservação de fertilidade, prévia ao tratamento definitivo com histerectomia. Trata-se de um subgrupo de pacientes mínimo em qualquer instituição e, dentre elas, grande parte enquadra-se nos critérios acima. Todas devem ser referenciadas para aconselhamento genético. Muitas dessas pacientes são portadoras de Síndrome do Ovário Policístico e o diagnóstico acaba sendo realizado em clínicas de fertilidade na avaliação inicial da queixa de infertilidade. Nessa situação específica, tem-se como padrão o uso da RNM com acurácia maior que 90% para avaliação inicial e triagem de pacientes elegíveis (Ben-Shachar et al., 2004; Koliopoulos et al., 2004). O tratamento consiste em remover totalmente a lesão, preferencialmente por histeroscopia, cujo produto deve ser totalmente avaliado por patologista experiente. Indica-se a colocação de dispositivo intrauterino tipo Mirena® ou progestágeno oral, assim como a recomendação para perda ponderal. É importante realizar exame de histeroscopia com 3 a 6 meses do procedimento, ou, como alternativa, curetagem uterina. Na ausência de lesão, remover o DIU e recomendar engravidar com a maior brevidade possível. Caso haja recidiva do tumor, a recomendação formal é de histerectomia.
Para as pacientes com tumores ovarianos tipo germinativo e as com borderline com desejo de preservar a fertilidade, deve-se oferecer estadiamento cirúrgico com manutenção do útero e, sempre que possível, do ovário contralateral. Para os tumores epiteliais invasivos, é necessário aconselhamento genético e estadiamento cirúrgico, cuja extensão depende de fatores como o tipo histológico do tumor. Há um risco potencial de doença metastática no ovário contralateral (Kajiyama et al., 2019) (Schilder et al., 2002). Benjamin et al. observaram que em 3/118 (2.5%) casos de câncer ovariano iniciais e com aparente doença confinada a um dos ovários, havia doença microscópica no ovário contralateral. O que, em caso de cirurgia preservadora, significaria risco potencial aumentado de recorrência. Em publicação de 2011, baseada em recomendações de uma força tarefa, a ESGO recomenda que a preservação ovariana pode ser discutida com pacientes jovens com neoplasia maligna do ovário estadio IA, G1 (Morice et al., 2011). Conforrme o NCCN, para pacientes selecionadas, com tumores epiteliais invasivos de ovário, é possível oferecer preservação do útero (se IA ou IB) e do ovário contralateral (se IA), com estadiamento cirúrgico adequado.
No contexto das pacientes jovens com necessidade de quimioterapia adjuvante por patologias não-ginecológicas e hematológicas, os riscos à fertilidade dependem da idade da paciente, da dosagem da medicação empregada, do sítio da doença primária e da modalidade do tratamento proposto. Em protocolos com quimioterapia, agentes alquilantes como ciclofosfamida parecem ter o maior risco de falência ovariana, comprometendo até mesmo oócitos em repouso (Goldhirsch et al., 1990; Meirow, 1999). As pacientes pós-púberes podem ser encaminhadas ao estímulo ovariano com gonadotrofinas, seguido por criopreservação de oócitos ou embriões. Avanços na criopreservação dos oócitos tornaram essa técnica replicável e com eficácia maior que em décadas passadas, atingindo taxas de fertilização de até 70% com injeção intracitoplasmática de esperma(Chen, 1986; Fabbri et al., 2001; Seli e Tangir, 2005; Oktay et al., 2006). Uma questão a ser debatida em particular com as pacientes com tumores hormônio-dependentes é o uso de gonadotrofinas na estimulação ovariana. Alguns especialistas recomendam protocolos que combinam estimulação tradicional com inibidores da aromatase, por exemplo (Oktay, 2005). Para as pacientes cujo início do tratamento não permite tempo para estimulação ovariana ou para aquelas que não são elegíveis para essa abordagem, a supressão medicamentosa das gônadas pode ser uma alternativa (Blumenfeld, 2007).
De forma especial, ainda existem as crianças do sexo feminino, nas quais a criopreservação de tecido ovariano e o transplante de tecido ovariano são opções a serem debatidas. A criopreservação do tecido ovariano não demanda estímulo hormonal e tampouco maturidade sexual, podendo ser o método disponível para esse grupo infantil (Sheshpari et al., 2019).
Nos pacientes do sexo masculino, o planejamento deve ser executado de forma análoga às mulheres. Na fase pós-puberal, no tratamento quimioterápico do adulto jovem, esse grupo de paciente deve obrigatoriamente ser encaminhado para aconselhamento especializado. A forma mais efetiva disponível envolve a criopreservação de sêmen. Na dependência do esquema terapêutico empregado, múltiplas amostras de esperma podem ser obtidas. De extrema importância é que a coleta seja realizada antes do início da quimioterapia, evitando, assim, dano permanente ao material genético ali contido. Quando a primeira coleta ocorre após o início da quimioterapia, recomenda-se fortemente que haja avaliação genética do material obtido na coleta de sêmen. Outros métodos têm sido empregados em várias partes do mundo, como preservação de tecido testicular, porém ainda não são considerados rotineiros (Radford et al., 1999; Bahadur et al., 2000; Brook et al., 2001; Keros et al., 2007; (Ginsberg 2011; Onofre et al. 2016; Ho et al. 2017; Heckmann et al. 2018; Stukenborg et al. 2018).
As estratégias multidisciplinares de preservação da fertilidade têm sido cada vez mais incorporadas aos centros oncológicos. Com os avanços tecnológicos, a maior compreensão do comportamento dos tumores e do tratamento, além do aumento significativo na sobrevida dos pacientes, muitos recursos estão disponíveis. Trata-se de questões de significativo impacto emocional e que devem ser fortemente consideradas quando delineado o plano terapêutico especializado.
Autores: Bruno Roberto Braga Azevedo. Cirurgião Oncológico do Instituto de Hematologia e Oncologia Curitiba / Grupo Oncoclínicas
2a Autora: Audrey Tieko Tsunoda, PhD. Cirurgiã Oncológica do Departamento de Ginecologia Oncológica do Hospital Erasto Gaertner e do Hospital Israelita Albert Einstein, Coordenadora do Programa de Cirurgia Robótica do Pilar Hospital / Hospital Care, e Professora da PPGTS / Pontifícia Universidade Católica do Paraná
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