Onconews - Cirurgia oncológica em pauta

heber salvador 22 bxEm entrevista exclusiva, o cirurgião oncológico Heber Salvador (foto), presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e médico do A.C.Camargo Cancer Center analisa o cenário da especialidade no país e discute os desafios e caminhos para a valorização do profissional na assistência multidisciplinar do paciente com câncer. Confira.

Pacientes tratados por cirurgiões que são treinados na cirurgia oncológica tem desfechos melhores que aqueles operados por cirurgiões que não têm esse treinamento. Você pode explorar um pouco essa perspectiva?
Temos indicadores que mostram isso, a própria literatura desde o final dos anos 90 já mostra que pacientes atendidos por cirurgiões treinados em tratamento oncológico tem desfechos melhores. A maior parte dessa literatura foi publicada na década de 90, início dos anos 2000, com análises que mostram que ter um procedimento realizado por um cirurgião oncológico, em um centro especializado e por uma equipe especializada reduz a mortalidade pós-operatória. Em alguns casos, a redução foi de 50%, ou seja, a chance de o paciente ter um óbito no pós-operatório foi duas vezes maior se fosse tratado fora daquelas unidades, mas também tem uma relação com o desfecho oncológico. Chama a atenção um estudo inglês que avaliou a qualidade do tratamento em câncer de mama na Inglaterra e a adequação do tratamento aos protocolos considerados ideais. Quando a paciente era tratada fora de um centro com cirurgiões treinados, no caso por cirurgiões oncológicos treinados em mama, você tinha uma taxa muito maior de margens comprometidas, de uma ressecção inadequada, como a preservação da mama quando isso não era oncologicamente seguro, além da omissão da radioterapia adjuvante. São critérios que mostram que treinamento em cirurgia de câncer é fundamental e que o treinamento em cirurgia de câncer em qualquer especialidade é fundamental para o desfecho. A especialidade em cirurgia oncológica é justamente o treinamento em cirurgia de câncer.

Em termos de curvas de aprendizado, há diferenças de acordo com o sítio anatômico, por exemplo uma cirurgia de mama ou do trato GI?
A cirurgia oncológica é uma especialidade que transcende essa organização de sistemas e órgãos. O especialista é treinado no raciocínio fisiopatológico do câncer, que pode ocorrer em qualquer lugar do corpo. Temos curvas de aprendizado e expertise chegando em diferentes níveis pela complexidade dos procedimentos exigidos para cada sede da neoplasia. Essas análises de curva de aprendizado existem e coincidem com o que eu apontei: quanto mais exposto a um procedimento, mais esse cirurgião vai ter a expertise. Outro ponto importante é que o cirurgião oncológico é um profissional treinado em multidisciplinaridade. A gente já entra na residência entendendo que tratar um câncer demanda uma cadeia de cuidado. Muitas vezes o cirurgião oncológico atua como um navegador do paciente nessa trajetória de tratamento. O cirurgião oncológico recebe o paciente para estadiar, confirmar o diagnóstico e frequentemente também parte dele a iniciativa de decidir que o tratamento não começa necessariamente pela cirurgia. É um profissional capaz de gerenciar a jornada do paciente. Quanto mais ele tem contato e se mantém ativo na realização dos procedimentos, melhor serão os desfechos de curto e longo prazo.

Temos uma população de um país continental e quantos cirurgiões eu tenho hoje treinados para esse modelo de assistência?
Esse é um ponto importante. A gente não tem um número consolidado, mas se a gente pegar a publicação Democracia Médica, coordenada pela USP com o Conselho Federal de Medicina, nós temos 3.500 profissionais que se declaram cirurgiões oncológicos

É um número muito aquém do que exige a realidade brasileira, não?
É realmente um percentual bastante pequeno de cirurgiões oncológicos quando você considera o universo de profissionais médicos, considerando quase 600 mil médicos no país. Um dado que chama a atenção para a SBCO são as residências. Hoje temos 54 residências de cirurgia oncológica no país e a Comissão Nacional de Residência Médica compareceu recentemente a um fórum que nós organizamos, onde nos foi apresentado o número de 250 residências de cirurgia oncológica iniciadas em 2021. Então, a ideia é que vamos formar mais ou menos em torno de 200, 250 cirurgiões oncológicos daqui a três anos. Isso mostra a diferença entre a oferta de cirurgiões oncológicos e a demanda por tratamento cirúrgico do câncer no Brasil.

E como é que a gente faz frente à realidade da assistência, entre o ideal e a vida como ela é?
Nenhum lugar do mundo tem a possibilidade de atender todos os pacientes com câncer por cirurgiões oncológicos e nem é esse o direcionamento da própria Sociedade. A SBCO não trabalha com a ideia de exclusividade, pelo contrário, nossa proposta é sempre de integração de times com expertises específicas, mas o cirurgião oncológico faz um papel de gerenciamento, de boas práticas de conduta, de padrões de tratamento cirúrgico. É um profissional treinado em alguns procedimentos mais complexos. Você pode ter um tumor de reto tratado por diversos especialistas com treinamento adequado e uma grande expertise, mas às vezes você tem um tumor que invade órgãos adjacentes, que necessita de um procedimento como a exenteração. Esse é um grande diferencial do cirurgião oncológico. É um especialista que não tem o objetivo de atender todos os casos de câncer, mas tem um papel fundamental na assistência oncológica. Uma publicação do Lancet trouxe uma análise sobre a demanda global de cirurgia oncológica e uma estimativa da força de trabalho que vai ser necessária. É uma análise que descreve esse cenário que comentamos, indicando que um número muito grande de pacientes não recebe cirurgia adequada. Em 2030, vamos precisar de 45 milhões de procedimentos cirúrgicos para câncer no mundo.

A grande massa da população brasileira tem exclusivamente o Sistema Único de Saúde. Quando a gente pensa na presença de cirurgiões oncológicos dentro de UNACONs e CACONs, como é esse número hoje?
Temos duas portarias regulamentando a estrutura da assistência oncológica no SUS. Na verdade, temos mais, embora duas sejam as principais. A portaria de 2019 lista os profissionais que precisam estar ligados aos centros de tratamento oncológicos, tanto nos UNACONs quanto nos CACONs, e essas portarias colocam a necessidade do cirurgião oncológico como responsável técnico pelo serviço de cirurgia daquele centro de tratamento. A Portaria não estabelece que apenas o cirurgião oncológico pode operar câncer, pelo contrário, na verdade lista os profissionais que podem atuar naquele estabelecimento. No que se refere à presença ou não do cirurgião oncológico, estamos fazendo um monitoramento junto ao Ministério da Saúde, checando nos CACONs e UNACONs do país se a regra da responsabilidade técnica está sendo cumprida. O desafio que o paciente do SUS tem hoje vai além do profissional que vai atendê-lo. Eu diria que hoje o principal desafio é o paciente ter acesso ao diagnóstico, dentro do que prevê a lei. São 60 dias entre a suspeita, o diagnóstico e o início do tratamento.  Na prática, isso não acontece, porque um paciente do SUS hoje aguarda 120 dias para receber o resultado de uma biópsia. Muitas vezes ele deixa de ser um paciente com doença ressecável para ter um tumor irressecável.

Como você colocou o cirurgião oncológico como um navegador, que guia o paciente no sistema, gostaríamos então de dimensionar que número é esse de cirurgiões oncológicos no SUS.
Eu não tenho esse número, estamos mapeando isso com o Ministério da Saúde. Realizamos recentemente um survey que alcançou cerca de 78% dos nossos associados e 70% deles referiram estar ligados à atenção oncológica do SUS, quer seja em hospitais gerais quer seja em serviços universitários, CACONs ou UNACONs. A inserção do cirurgião oncológico é grande e esse é um dos desafios da SBCO, defender esse espaço. Você não tem, por exemplo, vagas para cirurgiões oncológicos nos concursos públicos e essa é uma bandeira, a defesa profissional.

Quais as suas premissas à frente da Sociedade de Cirurgia Oncológica. Fica claro que formação é uma premissa muito presente, mas queria saber das grandes metas da sua gestão?
A SBCO cresceu muito. A gente tem uma história que durante muito tempo foi ligada a instituições de tratamento oncológico no País mas com certeza hoje já ultrapassamos esses muros e a especialidade está presente em vários cenários e está cada vez mais envolvida e atuante na determinação das políticas de tratamento do câncer no Brasil. Essa é uma das principais metas da minha gestão.  Treinamento, como já falamos, é um pilar muito importante e a SBCO está focada em ampliar as oportunidades de atualização para toda a equipe multidisciplinar.