À frente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, Alexandre Ferreira Oliveira discute perspectivas da especialidade.
A maioria da população se vale do SUS e sabemos que na oncologia a espera muitas vezes representa a progressão da doença. Faltam cirurgiões para garantir o acesso à cirurgia oportuna?
O principal gargalo não é a oferta, mas a distribuição desse cirurgião. E muitas vezes temos o profissional, mas não existe a estrutura. Você tem um cirurgião no hospital e às vezes falta vaga de CTI para uma cirurgia grande, por exemplo, ou falta material. Além disso, estão mal distribuídos e subaproveitados. Se o governo promovesse remuneração decente, se fizesse uma reforma na tabela do SUS, não só uma reforma financeira, adequando o valor das cirurgias, mas também oferecendo condições, o cenário seria outro. Hoje, cirurgias para câncer de reto ou histerectomias para câncer de endométrio são realizadas na clínica privada com relativa tranquilidade por videolaparoscopia. Mas quando o cirurgião vai operar no SUS, o valor que ele ganha pela cirurgia, a falta de condições, tudo isso desestimula. Ele vai ter que fazer uma laparotomia, às vezes é uma paciente obesa, diabética, hipertensa. Enfim, existem fatores que fazem com que o cirurgião desanime. E aí você começa a ter realmente a falta do cirurgião oncológico, porque ele procura locais onde consiga trabalhar com maior facilidade. E na oncologia tem outro aspecto importante, porque não adianta só a figura do cirurgião.
Exatamente. Os melhores resultados são em centros habilitados. Isso inibe o cirurgião não especialista interessado em aprender os preceitos da cirurgia oncológica?
Com certeza. Existe uma questão de mercado. Temos um número crescente de médicos, mas os cirurgiões especialistas não avançam necessariamente nessa proporção. Não tem nem residência para esse número de médicos que estão lançando no mercado. E existe uma diminuição da medicina privada. Hoje temos uma disputa de mercado na oncologia, justamente quando assistimos a um aumento da expectativa de vida. Nessa disputa, o cirurgião oncológico tem que estar bem posicionado, preparado dentro de uma visão multidisciplinar e interdisciplinar. Hoje o cirurgião faz cinco anos de residência, é treinado em Unacons e Cacons. Sabemos que para a maior chance de cura do paciente, a figura do cirurgião é muito importante, é um braço fundamental no tratamento do tumor sólido.
Em um país continental que vive a transição epidemiológica, treinar cirurgiões de outras especialidades é um caminho apontado inclusive pela própria Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO). Tem avançado?
Claro, a SBCO é uma sociedade aberta, cirurgiões de diferentes áreas podem participar dos nossos cursos de educação continuada. A ideia é focar nos preceitos básicos, desde a seleção do paciente que deve ser encaminhado para a cirurgia imediata, a realização de uma biopsia, o que é muito importante, porque uma biopsia malfeita pode prejudicar o paciente em termos de morbidade e cura.
Gerações de cirurgiões testemunharam a transição da cirurgia aberta para a cirurgia laparoscópica ou vídeo-assistida e mais recentemente para a robótica. Que desafio essa mudança representa em termos de segurança oncológica?
A cirurgia robótica nada mais é que uma via de acesso minimamente invasivo e não pode em momento nenhum suplantar os resultados oncológicos. A literatura mostra que não suplanta. Na cirurgia laparoscópica, alguns trabalhos já avaliam a questão do custo, porque você diminui o tempo de internação, diminui a morbidade, as complicações, e até pode conseguir uma equiparação do custo. Na robótica não, o custo ainda é caro. Acredito que esse cenário deve mudar com a quebra de patentes, mas não tem retorno. É um caminho sem volta e o cirurgião vai ter que se adequar. Evidentemente, eu não posso fazer uma cirurgia laparoscópica ou robótica e aumentar a taxa de mortalidade do meu serviço. O cirurgião precisa estar treinado.
O Journal of the American Medical Association reúne diferentes artigos com críticas à rápida expansão da robótica, ilustrando taxas bastante importantes de conversão para cirurgia aberta. Como vê esse cenário?
Na maioria das vezes, quando o cirurgião se depara com tumores mais avançados do que havia sido estadiado previamente, existem dificuldades técnicas, e a gente sabe que a taxa de conversão está relacionada, principalmente, com a experiência do cirurgião. Uma coisa que é preciso ter em mente, mas é difícil de ser medida, só a longo prazo, é a questão desse tempo cirúrgico. Qual o tempo para se converter uma cirurgia? Se você faz a cirurgia aberta em três horas, vale à pena fazer uma cirurgia robótica gastando 8 ou 12 horas? Será que está trazendo benefício para o paciente, seja em sobrevida e até mesmo de cura? Existe um dilema ético muito importante e uma questão mercadológica pressionando o médico para fazer robótica, quando na verdade o importante é fazer uma cirurgia bem feita, seja qual for o método.
Gostaria de conversar um pouco sobre o consenso brasileiro de sarcomas de partes moles de extremidades publicado recentemente no Journal of Surgical Oncology.
Isso sempre incomodou. É uma doença pouco frequente, responde por cerca de 2% das neoplasias sólidas no adulto e de 15% das neoplasias sólidas na criança. É um tumor agressivo, com altas taxas de recidiva local, de metástases à distância, e que sempre foi muito mal-conduzido. Poucos cirurgiões têm treinamento para trabalhar de forma adequada. Mas o tratamento evoluiu muito nos últimos anos. A gente sabe que o diagnóstico precoce e a cirurgia adequada são fatores preponderantes, assim como em todos os tumores sólidos. A cirurgia se ampliou no sentido da associação com ressecções vasculares para tumores que antes eram considerados irressecáveis, endopróteses associadas a reconstruções, muita coisa evoluiu.
Como entender que a terapia sistêmica concentre mais recursos que a cirurgia, que é uma abordagem curativa? É resultado do diagnóstico tardio ou é pressão de mercado?
Acho que são as duas coisas. Aquele trabalho do UICC foi muito interessante, demonstrando que 59% dos tumores são tratados em fases iniciais apenas com cirurgia. A cirurgia é um fator prognóstico importante, se não for principal. É imprescindível, mas também é preciso considerar que hoje não se consegue trabalhar de forma isolada. Temos que brigar para diminuir essa diferença do valor destinado à clínica e à cirurgia. O caminho não é diminuir o valor da oncologia clínica, mas aumentar o valor da cirurgia. No Sistema Único de Saúde, temos dois problemas graves: a baixa remuneração e a falta de condições. Nós falamos em robótica, mas a realidade é que não conseguimos fazer uma histerectomia videolaparoscópica para câncer pelo SUS com o código de oncologia. Então é preciso tratar não só da diferença de valoração de procedimentos, mas também das condições de trabalho do cirurgião.
Na sua visão pessoal, a Saúde é um bem de mercado ou um direito cidadão?
Se você considerar o aumento da expectativa de vida no Brasil, que hoje é aproximadamente de 75 anos, você percebe que essa curva começou a subir após a criação do SUS, em 1988. O SUS é um benefício muito importante para a população. Não consigo enxergar o país sem o SUS. Mas sua gestão deve ser melhorada. Existe uma questão mercadológica muito grande para incorporar tratamentos no SUS. Também existe a questão do fluxograma, que precisa ser melhorado. Por exemplo, 70% dos Cacons e Unacons não fazem o número mínimo de 600 cirurgias para continuarem credenciados. Algum Unacon ou Cacon é fechado por causa disso? Não. E muitas vezes, hospitais que fazem mais de 600 cirurgias oncológicas, não conseguem credenciamento, por questões políticas ou até mesmo de reformulação técnica do serviço.
Quais estudos recentes merecem destaque na oncologia cirúrgica?
A questão do LACC realmente foi um balde de água fria para quem faz laparoscopia em tumor de colo uterino, mostrando não só um índice de recidiva alto, mas mostrando também que quem recebe cirurgia aberta tem melhor sobrevida. O PRODIGE-7 foi outro estudo que mostrou um retrocesso muito grande em relação à HIPEC para câncer de colo uterino com carcinomatose. O que foi publicado mostra que a gente deu um passo atrás em relação a isso, mas pessoalmente acho que merece um novo trabalho. Em pacientes com carcinomatose de câncer colorretal, por exemplo, a HIPEC é uma estratégia importante e em casos pontuais hoje se fala até em transplante de fígado. Temos um longo caminho a percorrer, mas certamente o cirurgião tem muito a contribuir para melhorar a sobrevida do paciente oncológico.