Gonzalo Vecina Neto (foto), professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, discute a valorização do Sistema Único de Saúde (SUS) em tempos de pandemia de COVID-19 e defende a regionalização da saúde como alternativa para garantir melhorias no acesso. “É preciso criar uma regulação de acesso com características geográficas, de regiões de saúde”, afirma. Confira a entrevista exclusiva.
O SUS e a emergência sanitária da COVID-19. Que lições ficam para a sociedade e profissionais de saúde?
Essa epidemia trouxe uma percepção do que aconteceria se não houvesse o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa percepção de que o SUS é importante é positiva. No entanto, não existe SUS sem atenção primaria à saúde. É estruturante. E um dos primeiros atos desse governo foi dispensar 15 mil médicos que estavam em lugares remotos do Brasil sem criar nada no lugar. Agora, como recuperar isso? É por vontade da sociedade. A sociedade tem que entender o valor do Sistema Único de Saúde e fazer essa aposta, cobrar os governantes. Não tem outro jeito. Esse governo não se interessa pelo SUS, por isso a sociedade precisa cobrar.
Outro aspecto importante que espero que fique de lição dessa situação é fazer as pessoas perceberem que uma sociedade muito desigual não tem futuro. Se você tem uma pobreza como temos hoje nas periferias das nossas grandes cidades, você nunca vai se sentir sanitariamente seguro. E como resolver o problema da segurança sanitária, de uma epidemia como essa da COVID-19, se na periferia não existe água para lavar a mão, se as casas são sub-habitações onde muitas pessoas convivem num espaço pequeno, o que acaba alimentando a epidemia? Uma sociedade onde grande parte da população não tem emprego, vive na informalidade, não tem acesso a esgoto tratado. É inaceitável. Eu espero que essa epidemia sirva para que a gente aprenda que temos que diminuir essas desigualdades. E isso só vai acontecer se a sociedade resolver investir para melhorar as condições de vida de uma parcela muito grande da nossa população. Tem que haver investimento público, que vem dos impostos que nós pagamos. Temos que aprender a exigir o que deve ser feito com o nosso dinheiro. Não é um favor. A ficha tem que cair.
Priorizar investimento em saúde pública é um caminho para diminuir essa desigualdade?
Certamente, mas o atual governo piorou as condições de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2002, o SUS tinha aproximadamente 54% de financiamento do Governo Federal. Hoje, esse financiamento é de 42%. O Governo Federal foi retraindo a sua capacidade de financiamento e isso se tornou ainda mais agudo dentro do atual governo, nesse último ano. Não é só fruto da Emenda Constitucional 95, conhecida como ‘Teto dos Gastos’, mas de uma ação deliberada de desfinanciamento do sistema público. Assim como houve esse mesmo movimento em programas sociais, na ciência e tecnologia, na educação. Este governo só pensa na economia. A economia é fundamental, mas só com a economia não chegaremos a lugar nenhum. Da forma como defende o governo, a economia beneficia apenas quem tem dinheiro. Essa é a realidade.
A batalha contra a desinformação é tão grande quanto a batalha contra a COVID-19?
Recentemente, um político publicou um artigo em um jornal de grande circulação defendendo o fim do isolamento, advogando que a quarentena provoca mais mortes do que a COVID. Como pode um negócio desses? Ele assume a responsabilidade de dizer ‘vamos por esse povo para trabalhar e para morrer’. O Imperial College fez os cálculos demonstrando que sem a quarentena a probabilidade é de 1 milhão e 100 mil mortes no Brasil. Fazendo uma quarentena bem justa, 45 mil mortos. No meio do caminho, 500 mil mortos. Existe uma demonstração científica por trás disso. E o sujeito, sem nenhum dado, fala que a quarentena não funciona. Não dá para acreditar. Isso é desinformação. Estou acompanhando algumas curvas de aparecimento de doenças, é impressionante o que está acontecendo na cidade de São Paulo do ponto de vista da gripe sazonal. Caiu a gripe sazonal, os pronto-socorros pediátricos estão vazios. E todo ano, nesse período, cresce a gripe sazonal. O que aconteceu? As crianças estão fora da escola. Então, a quarentena teve um impacto fantástico na gripe sazonal. Nós não sabemos exatamente o impacto ela terá no COVID-19 porque não conhecemos o comportamento dessa doença. Mas conhecemos o comportamento da gripe sazonal. E todas as curvas de gripe da cidade caíram e os pronto-socorros estão vazios não porque as pessoas estão com medo de ir, é porque não tem criança com gripe. Porque nós fizemos o isolamento social. E com certeza esse isolamento tem impacto na COVID-19. Estaríamos em uma fase muito pior da epidemia, com os hospitais cheios, se estivéssemos sem a quarentena. Esse sujeito - e outros, como o próprio presidente -, insistem que temos que salvar a economia. A economia será salva. Mas a economia será salva se salvarmos antes os brasileiros. Uma epidemia dessas desestrutura a matriz econômica, com ou sem isolamento social. É responsabilidade do Estado dar condições para aqueles desprovidos de emprego, que não tem como comer, beber, para que vivam um pouquinho melhor na periferia. É o que tem que ser feito. É preciso difundir informação correta contra essas pessoas que ficam propagando besteiras alarmantes, que defendem que pagar o preço em vidas é mais barato do que pagar em reais.
A polêmica do uso da hidroxicloroquina no tratamento contra a COVID-19 é outro exemplo de desinformação?
Se ainda fosse um remédio relativamente inóquo, não fizesse mal, mas tem efeitos colaterais importantes em uma parcela da população. A teoria parece boa, que diminui a replicação do vírus. In vitro. Mas in vivo isso não está demonstrado. Até o momento, nenhum dos estudos conduzidos de acordo com projetos cientificamente aprovados, estudos duplo-cegos, com revisão de pares, nenhum conseguiu demonstrar que esse produto é seguro e tem o mínimo de eficácia para ser utilizado na população geral. Estamos utilizando para pacientes graves porque, nesse caso, a droga está em uso compassionado. E a pesquisa está sendo feita em cima disso. Não pode distribuir como se fosse cloro na água. Demoramos para construir esse edifício que é a medicina baseada em evidências e de repente estão jogando isso na lata do lixo. Não é à toa que tivemos o episódio da fosfoetanolamina.
O senhor falou do subfinanciamento à saúde. Por outro lado, o crescimento dos custos do tratamento do câncer é exponencial. Como resolver esse paradoxo?
Não vai resolver. Esse não é um problema brasileiro, é mundial. Estão descobrindo cada vez mais drogas novas, cada vez mais específicas e cada vez mais caras. Isso só tem um encaminhamento de solução a partir do desenho de políticas públicas para assumir a avaliação tecnológica dessas novas soluções, e essa avaliação tem que ser válida para 100% da população. Não pode ter uma regra para pobres e outra para ricos. Não pode ter a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) de um lado e o Rol da ANS (Agência Nacional de Saúde) de outro. É preciso uma regra única e o Estado tem que desenvolver políticas públicas para possibilitar esse acesso. No meio de tudo isso é preciso fortalecer uma política de desenvolvimento científico e tecnológico, uma política industrial na área farmacêutica. São caminhos alternativos para construir acesso que precisam ser utilizados. Não vejo outra saída.
Como enfrentar a distribuição desigual de recursos médicos?
Tem que haver uma conjunção de fatores. É preciso uma política pública que garanta que o profissional vai ser bem recebido, vai ser adequadamente remunerado para trabalhar naquele local mais remoto, é preciso criar essas condições. É importante a junção da proposição de políticas públicas, que é papel do Legislativo e do Executivo, com o Judiciário que cobra a existência e a aplicação dessas políticas, assim como a imprensa, que cobra e mostra ao Ministério Público onde é preciso atuar. E acho que é importante ter uma oferta maior de recursos. Acho que o médico é a única profissão no Brasil que tem pleno emprego. Porque o número de profissionais ainda é escasso, nós temos um médico para cada 600 habitantes. Na Europa existe um médico para cada 300 habitantes. O modelo de assistência à saúde que nós temos exige esse número europeu, além de uma enfermeira empoderada. Mas o que nós temos é uma enfermeira abandonada e um número de médicos ainda insuficiente. A abertura do curso de medicina em diversas faculdades deve resolver esse problema da oferta, mas ainda demora um pouco, só em 2026 conseguiremos atingir a quantidade necessária de profissionais por habitante. É lógico que a qualidade da maioria desses cursos é preocupante, mas depois de formados eles terão que ser aprovados eles terão que ser aprovados no exame da ordem. Muitos serão reprovados, vão ter que fazer cursinho, de algum jeito vão melhorar sua capacidade. A maior necessidade desses profissionais é nas periferias das cidades, na atenção primária. O serviço terá que recapacitar esse médico.
Investir na regionalização do modelo e na regulação de acesso seriam alternativas possíveis para garantir melhorias no acesso?
Sem dúvida. Sem criar uma regulação de acesso com características geográficas, de regiões de saúde, nada vai para a frente. A regulamentação da telemedicina é algo interessante que aconteceu com a epidemia. Estamos aprendendo como lidar com a digitalização, e isso é fantástico. A epidemia está servindo para nos transformar em animais digitais, que são mais eficientes que animais analógicos. Isso é muito bom, e temos que fazer isso andar depressa. Para que eu preciso de um médico ultrassonografista atrás de cada aparelho de ultrassom? Eu posso ter um técnico e ter uma central de laudos com inteligência artificial para fazer a primeira triagem, e depois médicos para fazer a leitura definitiva. O futuro é esse.
Como podemos melhorar o diálogo entre as unidades básicas de saúde e os centros de alta complexidade?
Isso é essencial. Por exemplo, é possível melhorar o diagnóstico precoce de diversos tipos de câncer se você tiver uma estratégia da saúde preocupada com isso, atenta a alguns sinais. Não se faz diagnóstico de câncer na atenção secundária ou terciária. Se o diagnóstico foi realizado nessas esferas, está atrasado. O caminho é investir na capacitação dos profissionais da atenção primária para identificar sinais precoces do aparecimento de doenças graves. O Programa Nacional de Aids é um exemplo. Os serviços são orientados sobre sintomas, sobre a realização de exames diagnósticos, sobre encaminhamento. É um programa altamente exitoso, que consegue distribuir remédios caros para todos que precisam, são 800 mil portadores do vírus HIV que são acompanhados, com queda da mortalidade.
Perfil: Gonzalo Vecina Neto é médico graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e Mestre em Administração e Saúde pela EAESP/FGV. Foi fundador e Diretor-Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, Secretário Nacional da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e Superintendente do Hospital Sírio-Libanês. É Professor Assistente da Faculdade de Saúde Pública da USP.