Em entrevista durante a ASCO 2017, o oncologista Gilberto Lopes apontou caminhos para avançar na sustentabilidade e na qualidade da assistência.Com o aumento da incidência do câncer, países ricos e pobres devem buscar alocação racional dos recursos para vencer as barreiras do acesso.
Onconews: A estratificação de guidelines para diferentes realidades foi tema da sua apresentação na sessão educacional da ASCO. Como isso dialoga com o contexto da oncologia no Brasil?
Gilberto Lopes: No mundo inteiro, a incidência de câncer tem aumentado em um ritmo acelerado, mas parte desproporcional dos casos e mortes pela doença ainda ocorre em países de baixa e média renda (LMICs), geralmente com recursos limitados para prevenção, diagnóstico e tratamento. Isso mostra profundas disparidades globais no controle do câncer. Em nosso estudo, a razão entre as mortes por câncer e o número total de casos é de 47% nos países de alta renda e de 66% em países de baixa e média renda, que comparativamente investem uma pequena fração em prevenção e controle. Enquanto Estados Unidos, Reino Unido e Japão destinam de US$ 183 a US$ 460 por paciente de câncer, na América do Sul, Índia e China o volume investido é de apenas US$ 0,54 a US$ 7,92 por paciente. Significa que nas regiões com maior disponibilidade de recursos, o custo da assistência oncológica per capita é cinco a 10 vezes maior. E não são diferenças que podemos atribuir somente à relativa falta de recursos. Essas diferenças também existem porque os decisores políticos nem sempre entendem o câncer como um importante problema de saúde pública. Os sistemas de saúde que enfrentam limitações precisam investir no controle do câncer de forma custo-efetiva e gradual. É o único caminho para alcançar os melhores resultados no menor período de tempo, com uma alocação racional dos recursos. Para os médicos, conhecer a estratégia de gerenciamento ótima, baseada em orientações desenvolvidas em países ricos, não é suficiente para fornecer cuidados ideais aos pacientes quando faltam recursos de diagnóstico e tratamento. O mais importante é priorizar práticas que efetivamente podem preencher as necessidades de cuidados de saúde em contextos de recursos limitados, onde os pacientes geralmente apresentam doença mais avançada ao diagnóstico. Vários grupos, como o BHGI, Asian Oncology Summit, National Comprehensive Cancer Network (NCCN) e ASCO tomaram a iniciativa de desenvolver recomendações estratificadas por disponibilidade de recursos para ajudar a preencher essa lacuna. Ao coletar e interpretar evidências e categorizá-las por disponibilidade econômica, o objetivo é fornecer recomendações para potencializar os resultados e rentabilizar a alocação de recursos.
Apenas um terço dos agentes anticâncer aprovados pelo FDA e EMA em 2016 passaram na Escala de Benefício Clínico, todos de alto custo1. Isso aprofunda as desigualdades?
Esse é um ponto extremamente importante. Melhorias graduais, pequenas, não são por si mesmas ruins. Hoje, por exemplo, mais da metade dos pacientes com câncer de cólon metastático vive pelo menos dois anos e meio após o diagnóstico, graças a aumentos pequenos, mas incrementais, com a adição de fluoropirimidinas, quimioterápicos clássicos, como oxaliplatina e irinotecano, e tratamentos-alvo com antiangiogênicos e anticorpos monoclonais. O grande desafio é que elas vêm com um custo cada vez mais alto de desenvolvimento e, consequentemente, de acesso. Muitas companhias farmacêuticas ainda investem mais em marketing, o que é importante para a disseminação de resultados, do que em desenvolvimento de novos medicamentos, obviamente a sua principal função social. Mais ainda, como há uma responsabilidade fiduciária com seus acionistas, a indústria cobra os preços que pode, em especial nos Estados Unidos, onde o maior pagador, o Medicare (público), não pode negociar preços por exigência da legislação atual. Precisamos promover a competição e estimular negociações para conseguir aumentar o acesso, principalmente em áreas com recursos mais limitados.
Recente editorial da Nature2 falou de conflitos de interesse na revisão por pares. Como editor-chefe do JGO, como vê essa crítica?
Os conflitos de interesse são reais. Há um número de estudos que sugere que mesmo receber uma caneta como brinde pode fazer um médico prescrever mais de um remédio que outro, em especial quando são drogas equivalentes. Mas as relações com a indústria são necessárias. Hoje, a maior parte dos investimentos em novas drogas vem de fontes privadas. A indústria contribui mais do que o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos. Claro que os investimentos em ciência básica ainda são mais claros em fontes governamentais, mas não há dúvida de que precisamos de um ecossistema complexo e com muitas conexões para continuar criando inovação. Para evitar ou melhor administrar esses conflitos, a transparência é fundamental. Significa, por exemplo, manter contratos e ter evidência das razões da interação entre médicos e pesquisadores de um lado, e fontes privadas de apoio à pesquisa e pagamentos pessoais do outro. É importante que aqueles que trabalham com o governo, instituições públicas ou que estão em posição de influenciar colegas declarem de maneira clara e pública quais são os conflitos, que não precisam ser necessariamente financeiros. Outro aspecto fundamental é seguir as regras especificas das sociedades e atividades em que estamos envolvidos. Antes de assumir como editor-chefe do Journal of Global Oncology, eu precisei terminar todos os projetos e relações individuais que mantinha com a indústria farmacêutica, cumprindo determinação e regras da ASCO.
A medicina personalizada pode dialogar com o conceito de saúde coletiva, de saúde para todos?
Sem dúvida. O tratamento mais caro é aquele que não funciona. A medicina personalizada está engatinhando. O conceito de criar medicamentos para tratar milhares de pacientes e diminuir o risco estatístico de eventos ou mortalidade em 2 a 5%, que foi a norma em muitos estudos cardiovasculares nas últimas duas décadas, é insustentável. Quando selecionamos pacientes adequadamente, os benefícios estatísticos e clínicos são muito maiores, como por exemplo com imatinib em LMC e GIST ou inibidores de tirosina quinase do EGFR em pacientes com câncer de pulmão mutado. Por outro lado, com medicamentos como bevacizumabe em câncer de pulmão ou mama, para os quais não temos um bom método de seleção, há um potencial benefício que é relativamente pequeno em sobrevida livre de progressão e ainda mais duvidoso em sobrevida global.
Quando um tratamento anticâncer chega a US$1 milhão, como acontece com esquemas de combinação em imuno-oncologia, que reflexão podemos fazer? A ciência ficou cara demais?
Essa é uma discussão que podemos estender por dias. Precisamos pensar em maneiras inovadoras de aumentar o acesso. Isso passa por discutir a quebra de patentes como forma de negociar preços com a indústria e além da licença compulsória passa também por discutir competição. Nesse contexto, entra a importância de aumentar o uso de genéricos e biossimilares, por exemplo, assim como é fundamental criar um fundo global para tratar câncer em países de baixa renda. Por outro lado, precisamos aumentar a participação em ensaios clínicos, que podem ajudar a melhorar a qualidade do atendimento clínico e, em alguns casos, a disponibilizar medicamentos que não estão disponíveis no SUS, mas são considerados padrão ao redor do mundo.
Diante das profundas desigualdades no acesso, qual o papel do prescritor em uma realidade como a do Brasil?
O prescritor tem uma responsabilidade imediata com o paciente que está vendo no seu dia a dia, mas também com a sustentabilidade do sistema de saúde no longo prazo, seja no âmbito público ou privado. Precisamos não só fazer parte, mas na verdade liderar essa discussão com a sociedade brasileira e nossos representantes.A ASCO deste ano consagra a imuno-oncologia como a grande aposta na pesquisa em câncer. A toxicidade financeira preocupa?
Ainda temos muito o que aprender, mas a imunoterapia está aqui para ficar e realmente traz o potencial de tornar o câncer uma doença crônica. Com o adequado equilíbrio entre custo e benefício, temos que continuar criando um sistema de saúde que permita o acesso à inovação, para que esses achados não demorem de 10 a 20 anos para chegar a todos os brasileiros.
Como você vê o momento atual da pesquisa em câncer no Brasil?
A atuação de grupos de profissionais e da sociedade civil começa a mover o nosso sistema de pesquisa na direção correta. Ainda há dificuldades, essencialmente burocráticas e que poderiam ser diminuídas facilmente, mas vejo que pelo menos estamos começando a trilhar o caminho certo.
Perfil
Gilberto Lopes é médico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi fellowship em Oncologia e Hematologia pelo Jackson Memorial Hospital. Atualmente, é oncologista clínico do Hospital da Universidade de Miami e editor-chefe do Journal of Global Oncology.
Referências:
1 - Approvals in 2016: questioning the clinical benefit of anticancer therapies - Nature Reviews Clinical Oncology, 14,135–136(2017) doi:10.1038/nrclinonc.2017.18
2 - Predatory journals recruit fake editor - Nature 543,481–483 (23 March 2017) doi:10.1038/543481a