Maria Del Pilar Estevez Diz (foto) aponta caminhos para melhorar a assistência oncológica na saúde pública. À frente da oncologia clínica de um dos principais centros públicos de tratamento do câncer da América Latina, ela destaca o papel da prevenção e lembra que o diagnóstico oportuno pode melhorar as taxas de cura.
Na era da genômica, que atributos se espera do oncologista?
Antes, o profissional precisava conhecer a história natural da doença, os efeitos colaterais e precisava adquirir conhecimentos bem razoáveis de estatística e epidemiologia para interpretar o que estava sendo apresentado. Hoje, o cenário ficou mais complexo. O oncologista precisa ter conhecimentos de biologia molecular para entender o mecanismo de ação e seleção das novas drogas e interpretar o que está sendo apresentado. É preciso ter esse background teórico. Acontece que os profissionais mais antigos são de uma geração que é anterior aos conhecimentos de biologia molecular. Se esse oncologista está há mais tempo na vida prática, precisa ser provido desse conhecimento. Esse é um desafio, mas é também uma oportunidade para a oncologia, porque no Brasil não existe uma sistemática organizada nem de reavaliação, nem de requalificação dos seus profissionais. Hoje, essa busca pela atualização fica por conta do indivíduo, que precisa identificar de forma muito honesta qual sua deficiência e correr atrás dessa qualificação. As sociedades médicas começam a esboçar um movimento nesse sentido, para apoiar essa educação médica continuada. Talvez as grandes instituições de ensino pudessem ocupar esse papel de requalificar esses profissionais de uma maneira mais ordenada. O ideal seria que as grandes instituições acadêmicas ou as sociedades de oncologistas tivessem atividades formativas, de forma sistemática.
Instituições públicas, essencialmente?
Acredito que instituições que tenham residência e que tenham o perfil acadêmico. Não estou dizendo que um hospital que não tenha um perfil acadêmico não possa oferecer um excelente curso de revisão. Pode sim. São cursos de longa duração, voltados para uma carga teórica forte, mas com um olhar muito grande para a prática. Esses cursos de extensão para médicos já formados deveriam existir mais regularmente, fazer parte do dia a dia das instituições.
Ao valorizar essa onda de inovação, corremos o risco de deixar de lado a importância da prevenção, ou até do papel de uma escuta mais atenta na interlocução com o paciente?
Essa é uma questão importante. A medicina de precisão trouxe o tratamento correto para o paciente correto. A gente fala muito de medicamentos, mas não podemos esquecer que os medicamentos existem para tratar pessoas. O paciente continua sendo o centro da questão e sua trajetória não começa no momento da doença avançada, onde ele vai ter a necessidade da medicina altamente personalizada, mas começa nas medidas de prevenção, que para algumas neoplasias são altamente eficientes. Essa deveria ser a lógica. Existe a questão da oferta e adesão aos exames, é fundamental identificar a população que deveria estar fazendo sua prevenção e não faz, enfim, são prioridades como essas que precisam ser consideradas. Lógico, nem tudo é prevenível ou passível de diagnóstico precoce, mas esses são pontos fundamentais. A vacina do HPV, por exemplo, está aprovada, mas tem apresentado baixa taxa de adesão, principalmente para a segunda dose. Isso é péssimo! Eu tenho uma intervenção que é altamente efetiva, mas não consigo ter a cobertura que idealizei. Falta ênfase na prevenção, porque muito melhor do que tratar um câncer de colo uterino é você vacinar a população-alvo e reduzir a frequência da doença de uma maneira estupenda.
Na sua experiência, onde estão os maiores vazios de assistência?
A questão do diagnóstico precisa ser olhada com cuidado. O acesso é desigual e a nossa experiência mostra que alguns pacientes conseguem chegar mais rapidamente. O estado de São Paulo montou a CROSS, um sistema de acesso aos centros de câncer, que veio para regionalizar o atendimento e tornar o tratamento o mais uniforme possível dentro dos vários centros. Mas o sistema acompanha esse paciente a partir do diagnóstico. Antes do diagnóstico, o que se observa é que existem tempos diferentes para o paciente fazer a biópsia, o seu exame, e entrar no sistema. Não é possível ter uma suspeita de neoplasia e demorar mais de um mês para receber o resultado de uma biópsia, por exemplo. A gente sabe que os pacientes podem ter progressão nesse caminho e o sistema não prevê uma via mais fácil, mesmo quando eu tenho um alto grau de suspeita de câncer. É logico que toda mulher precisa fazer mamografia, mas quando eu tenho um nódulo suspeito é natural que ela tenha uma via mais rápida de acesso para o exame, para a biópsia e para o resultado. O mesmo vale diante de alguns sintomas, quando é preciso descartar a possibilidade de câncer, como um sangramento genital ou intestinal. Esse é um ponto onde temos muito o que trabalhar, porque se eu abrevio o tempo para o diagnóstico eu impeço que a doença progrida e consigo melhorar as minhas taxas de cura, que ainda deixam muito a desejar. E depois disso, a gente chega na questão do tratamento propriamente dito, que requer um sistema com disponibilidade de cirurgiões apropriados para o tratamento do câncer, oncologistas, centros de oncologia, radioterapia quando necessário, todos esses aspectos com uma distribuição equitativa. Em nenhum dos pontos nós estamos totalmente resolvidos. E ainda nem cheguei na questão econômica, do custo do procedimento em si. Para o sistema funcionar e o paciente ser beneficiado, todos esses aspectos precisam de atenção.
Umas das dificuldades é o diálogo entre as unidades básicas e os centros de alta complexidade?
Existem duas situações distintas envolvendo o médico generalista. Uma é ele demorar para encaminhar o paciente. A outra situação é fazer um excesso de diagnósticos e mandar os casos que não precisava mandar. E aí o paciente certo não chega no lugar certo. Assim como o oncologista, o generalista também precisa de alguma forma acompanhar a evolução dos tratamentos, porque às vezes esse profissional não conhece a evolução e perde um pouco essa noção do tempo. Hoje, pode ter tratamento para aquele caso que no passado não tinha muita alternativa. Há alguns anos o ICESP promoveu cursos de capacitação com ginecologistas para diminuir o tempo de encaminhamento de pacientes com suspeita de câncer de mama. Foi uma intervenção muito bacana. Foram aulas curtas, muito focadas, com um objetivo bem claro. Isso melhorou o encaminhamento. Seria muito bom se essas iniciativas fossem mais rotineiras, sistemáticas mesmo.
Na linha de cuidados em câncer, estamos mesmo preparados para a assistência multidisciplinar?
Eu tenho a sorte de atuar em instituições que trabalham com equipes multidisciplinares. Aqui no ICESP nós realmente atuamos de maneira multidisciplinar, com protocolos bem alinhados e uma padronização de condutas com base em evidências. Às vezes eu tenho divergências na literatura, e elas existem de sobra na medicina, e o grupo precisa assumir uma posição. Na prática, com quase mil novos casos de câncer por mês na instituição, não é possível que todos os pacientes sejam vistos ao mesmo tempo por toda a equipe. Mas se eu tenho um protocolo definindo como é a minha linha de cuidados para aquela situação específica, eu consigo oferecer o atendimento necessário. A multidisciplinaridade implica uma ideia muito clara de como conduzir aquele paciente na minha instituição, demandando o atendimento especifico, de acordo com a complexidade do caso. Assim, eu consigo racionalizar recursos e trazer o mínimo de lógica e conforto para o meu paciente.
Qualidade de vida e dor são temas que se interligam e que estão presentes na sua biografia profissional. É uma lição da prática como oncologista?
Fiz um curso de qualidade de vida quando ainda estava no Hospital das Clínicas, porque era um interesse pessoal ter uma capacitação específica para o cuidado dos sintomas. A oncologia é uma especialidade fantástica, porque em todos os momentos da vida desse indivíduo que tem ou teve câncer podemos ter alguma intervenção para melhorar a qualidade de vida. Esse é o meu objetivo. No fundo, qualidade de vida é trazer o maior conforto possível para aquele paciente naquele momento. Acho que todo oncologista tem que ter uma capacitação adequada para atuar no controle da dor. Se 70% dos pacientes vão ter dor em algum momento da sua trajetória, eu preciso ter uma familiaridade para tratar esse sintoma. A mesma coisa serve para náuseas, vômitos, constipação, prurido, questões de autoimagem, como a queda de cabelo, das sobrancelhas, a pele que fica seca, a acne. A gente precisa enxergar o paciente como um todo, ouvir o que ele tem a dizer e dar valor a essas queixas. Sem julgamento. Não é o meu ponto de vista que conta, é o ponto de vista do paciente. Talvez o exercício mais difícil na medicina seja esse: enxergar o paciente com os olhos dele, se colocar no lugar do outro. Aquilo que pode ser irrelevante para mim, para ele é essencial. Então, valorizar a qualidade de vida passa por valorizar esse olhar. Antes os estudos avaliavam a qualidade de vida de uma maneira muito burocrática e acho que agora a gente vê análises um pouco mais sofisticadas. A sobrevida livre de progressão aumentou? Ótimo. Mas isso pode ter sido bom ou não tão bom assim. Transformar o câncer em uma doença crônica é um avanço. Mas é muito bom quando traz uma sobrevida satisfatória para o paciente, do ponto de vista dele. Em áreas onde observamos altas taxas de cura, como a pediatria, isso é levado muito em consideração. Olhar para as toxicidades tardias com muita preocupação, porque esse indivíduo vai viver muito tempo. A oncologia está aprendendo isso agora.
Como é comandar a área médica do maior centro público de assistência ao câncer do hemisfério Sul?
Não sei se é o maior centro, mas sei que é sem dúvida uma instituição muito importante, que desempenha um papel relevante no estado de São Paulo e pode ser um modelo de atendimento replicável para outros centros. Tivemos o privilégio de estar nessa instituição desde o momento da abertura. Eu considero um privilégio porque em poucos momentos da vida você vai poder acompanhar o desenvolvimento de uma instituição desse porte e ter a possibilidade de interferir de uma maneira muito objetiva para a construção desse modelo. Eu também me sinto feliz porque muito daquilo que a gente imaginou que poderia ser feito, foi feito. Pessoalmente, é um aprendizado gigantesco, que nenhum curso poderia me oferecer. É uma instituição onde a gente trabalha de maneira verdadeiramente humanizada, porque o paciente é o centro. O aluno, desde a graduação até a pós-graduação, também tem um papel central, é respeitado e participa ativamente. A gente olha de verdade para assistência, ensino e pesquisa. Eu me sinto muito privilegiada em ter participado de todo esse processo. Mas com a plena consciência de que a gente ainda tem muito o que avançar.
Perfil: Maria Del Pilar Estevez Diz é Diretora Multi Especialidades e Coordenadora da Oncologia Clínica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo – ICESP e médica assistente do Hospital Sírio Libanês.