Angelo Maiolino fala da falta de oferta de leitos para transplantes autólogos no sistema público e diz que a dificuldade de acesso ao tratamento na oncohematologia é o retrato da injustiça social brasileira.
Angelo Maiolino integra a diretoria da Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH), é professor adjunto da disciplina de hematologia e coordenador do serviço de transplante de medula óssea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
ON: Avançamos na oferta do transplante autólogo e como é hoje essa realidade no Brasil?
A principal indicação é para os pacientes de mieloma múltiplo, que hoje representam cerca de 60% a 70% dos casos de transplante. Depois vêm o linfoma recidivado e ainda uma pequena parcela para outras indicações. No setor público, a dificuldade é mais relacionada à oferta de leitos. Existe uma demanda muito maior do que a oferta de leitos para transplante autólogo. O que acontece no SUS é a competição do leito pelo transplante alogênico e tudo isso leva a uma demora para atender adequadamente o número de pacientes que precisam do autotransplante. Isso é realmente um grande problema na oncohematologia. O SUS precisa avançar nessa direção, porque o paciente com indicação de transplante precisa ser atendido com rapidez e não é o que temos hoje na estrutura do SUS. A qualidade do transplante é muito boa, mas a oferta de leitos não é suficiente.
ON: A cobertura melhorou?
Você ainda não tem alternativas no Norte do país, mas a cobertura regional melhorou. No Nordeste você tem centros de transplante em Natal, Fortaleza, Recife. A região central também está coberta, em Goiânia, o que mostra que houve avanços. No entanto, ainda existe enorme necessidade de investimento, de capacitação de centros e de pessoas. Não é coisa que se faz da noite para o dia e o Ministério da Saúde sabe bem disso. Todos os programas de transplanta em atividade no Brasil são tutelados pelo Sistema Nacional de Transplante, tanto na esfera pública quanto na saúde privada. Para uma unidade funcionar, ela tem que ser credenciada ao SNT. Portanto, existe um controle do Ministério, uma governança. O que falta é incentivo para ampliar a oferta de leitos.
ON: Existem críticas de que falta acesso a tratamentos mais eficazes na oncohematologia. Qual a sua opinião?
Infelizmente é uma realidade e os pacientes ficam prejudicados. Nesse campo, temos dificuldades relacionadas à regulação de medicamentos no Brasil. Começa na Anvisa e continua na hora da incorporação. Nos últimos tempos, vários medicamentos para o tratamento do câncer tiveram o registro negado no Brasil. Eu acompanhei mais de perto a questão da lenalidomida, porque trabalho com mieloma. Nós discordamos dos critérios adotados pela Anvisa para negar o registro do remédio e isso foi muito questionado. São critérios que fogem à compreensão diante de uma evidência científica que foi aceita por organismos do mundo inteiro, em mais de 80 países. Isso depois se repetiu com outros medicamentos para o câncer, como a bendamustina e outros tantos, que caíram na mesma argumentação. É sempre a mesma história e isso traz consequências muito graves. Chega a afetar todo um contexto de pesquisa. São estudos clínicos que deixam de vir para o Brasil, diante dessas dificuldades regulatórias. Mas o pior é a falta de acesso para o paciente. O que temos hoje é um cenário com uma distribuição toda irregular, o que é muito injusto. O acesso dos convênios é um; o acesso privado é um e o acesso público é esse flagelo, essa bagunça. Dentro do próprio SUS existem locais que têm; outros que não têm. Essa é uma situação mais absurda ainda, é pior do que não ter para ninguém. A desigualdade da distribuição de medicamentos no Brasil é tremendamente injusta do ponto de vista social.
Ninguém está querendo aqui que aprove automaticamente, mas que tenha mais lógica. Tem que haver uma agência reguladora, isso ninguém discute. Qual é a questão? Tem que ter transparência nos processos, tem que ter critério. O sentimento geral é de que há uma política para embarreirar a entrada de novos medicamentos no país. Claro que são medicamentos de alto custo, isso é outro assunto. Na Inglaterra, por exemplo, eles negociam depois com a indústria de modo centralizado. O que incomoda é negar o registro utilizando evidências que não são científicas.
ON: O paciente brasileiro é o grande prejudicado?
Não tenho dúvida. O paciente é o mais prejudicado. Em certa medida, também o médico é prejudicado. Não consegue exercer a sua atividade de forma adequada. Se o nosso paciente não tem acesso, se o acesso é desigual, se você não pode seguir o padrão que é minimamente aceitável, é claro que o médico sofre. Isso gera um stress, uma frustração profissional muito grande. Você vai a um congresso como a ASCO em um painel de mieloma múltiplo ou de leucemia linfóide crônica e vê que você não tem acesso a 80%, 90% daqueles medicamentos apresentados lá. Isso é frustrante, assim como traz um desgaste muito grande ver no dia a dia essa iniquidade, essa barreira no acesso. Isso tem que acabar. A gente chega a se expor pessoalmente e todo mundo identifica o médico como aquele que pode resolver isso. Não é. O médico também é vítima, também paga um preço. Se você não pode tratar adequadamente o seu paciente você vai contra o seu juramento de Hipócrates.Vivo essa angústia toda hora, a todo momento. Eu queria ter a possibilidade de fazer o melhor pelo meu paciente. Honestamente, hoje eu não tenho essa possibilidade. Não tenho de manhã quando trabalho na universidade e não tenho a tarde, no consultório. Isso precisa acabar. O mundo todo está preocupado com o acesso, é uma questão universal, mas precisa ter critério. O que é inaceitável é ter para um e não ter para outro. Isso para mim é o retrato da injustiça social brasileira.
ON: E na pesquisa clínica, como fomentar o acesso?
O problema neste caso está na parte regulatória que cabe à CONEP. A burocracia brasileira ela é de uma criatividade impressionante. Tudo é feito partindo da premissa de que alguém vai ser prejudicado naquele processo. Nunca se vê a crença de que aquilo que você está fazendo é adequado. Então, processos que levam dois meses lá fora aqui levam dois anos. Uma vírgula fora de lugar custa dois meses de espera. Uma palavra mal empregada outros dois. Mais uma vez, a regulação é absolutamente necessária, a ética na pesquisa é essencial, mas o que é injustificável é ver o Brasil como o último país a entrar nos estudos. Grandes pesquisas multicêntricas são sempre competitivas. Quem registra primeiro vai incluir mais pacientes. Quando atingir o número previsto, o estudo encerra o recrutamento e acabou. O paciente brasileiro fica de fora. Outro dia vivi isso. Queria incluir 30 pacientes em um estudo importante, só cinco conseguiram participar. É o monstro da burocracia e o governo tem que intervir. Mas o problema é que tem muita gente que ama a burocracia e vive disso. Enquanto isso, a gente vai passando esse constrangimento.