O oncologista clínico Eduardo Zucca (foto), do Hospital de Câncer de Barretos (Hospital de Amor), discute estudos de mundo real e estudos de iniciativa do investigador e se mostra otimista com os rumos da pesquisa clínica no Brasil.
Existem caminhos para a pesquisa em câncer para além dos estudos patrocinados pelas farmacêuticas?
Existem e com certeza devem ser estimulados. Acho que estudos de iniciativa do investigador são um exemplo, ainda que muitas vezes também envolvam medicamentos da indústria. O oncologista que está muito perto do paciente e vê a necessidade de usar certos medicamentos, ele tem na pesquisa clínica a oportunidade para uma abordagem com potencial benefício clínico. No Brasil, infelizmente, ainda estamos iniciando, mas temos estudos como esses em andamento, alguns até em parceria com a indústria. O LACOG-GU, por exemplo, tem estudos de iniciativa do investigador no câncer geniturinário. São estudos que olham para uma dada população que não atrai o interesse da indústria. É o caso do estudo em câncer de pênis, um câncer raro, de terceiro mundo, que muitas vezes não desperta interesse das farmacêuticas, mas tem importância na nossa realidade. É uma iniciativa do Fernando Maluf avaliando inibidores de checkpoint imune no câncer de pênis. Acho super válido e precisamos fortalecer pesquisas como essas.
Nossa modesta participação em estudos de iniciativa do investigador reflete uma barreira cultural ou esbarra também na dificuldade de financiamento?
Acho que existem muitos aspectos aí. Existe uma questão cultural sim, mas também existe a questão financeira, porque fazer pesquisa e viver de pesquisa no Brasil não é simples. Isso explica por que a maioria absoluta dos oncologistas ainda está muito focada na assistência, é onde estão os recursos. Quando você tem um oncologista que também é investigador, que está encarregado de desenhar e rodar um estudo clínico, pode ter certeza que isso demanda muito tempo, muito esforço pessoal. É importante ter em perspectiva que formar um especialista na atividade de pesquisa também leva tempo, não é coisa que se faz da noite para o dia. Mas temos que começar de algum lugar e acho importante desenhar estudos para a nossa realidade.
Uma pesquisa de Barretos resultou em um produto patenteado, a partir de um arbusto da flora brasileira. É um caminho?
Sem dúvida. A gente tem uma gama de produtos para serem investigados. O aveloz, por exemplo, teve um estudo pré-clínico e ainda não entrou na fase clínica, mas o potencial existe, o interesse existe. Quando a gente pensa em pesquisa, o estudo com aveloz mostra o valor do nosso potencial. É um excelente exemplo de como desenvolver um produto patenteado e a partir dele ter uma aplicação clínica. Acho que instituições maiores, como a nossa, vão conduzir a maioria desses estudos.
Por que o sentimento geral de que a Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer não avançou?
Acho que essa iniciativa enfrentou uma barreira gigantesca, que é a questão burocrática. Certa vez, o oncologista Carlos Gil, ex-presidente da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer, esteve em Barretos para falar dos projetos. Ele nos contou que era preciso fazer licitação para a compra de um material básico, muitas vezes. Licitações que demoravam meses. Imagine interromper o estudo esperando meses pela compra de um reagente. Hoje, aqueles que conseguem avançar são muitas vezes os que têm mais agilidade, com um ambiente favorável à condução da pesquisa. A burocracia, ao contrário, inviabiliza qualquer projeto. Então, a Rede foi um esforço importante, eles tentaram desenhar um panorama da pesquisa no Brasil, que foi bem interessante, mas realmente não avançou. Hoje, acho que não devemos esperar que a pesquisa em câncer seja impulsionada por alguma iniciativa pública. Nós como oncologistas e investigadores temos que ter também uma participação mais ativa. Pessoalmente, sou muito otimista com os caminhos da pesquisa no Brasil. Estamos amadurecendo, sem dúvida.
Estudos de mundo real, o que esperar na oncologia? Qual o impacto?
Eu acho que os estudos vão caminhar cada vez mais para o mundo real. Sou muito crítico de estudos que selecionam tanto o paciente que no fim das contas esse paciente não existe, é irreal, de tão selecionado que ele é. Essa é uma grande crítica ao modelo de recrutamento desses estudos, com modelos de inclusão e modelos de exclusão que acabam por refinar e impedem que o paciente real participe. No fundo, são oportunidades sendo fechadas. A gente tentou fazer no Brasil um estudo muito interessante, o Tapur, que é um estudo de real world apresentado na ASCO, mas no fim não participamos. Acho que estudos de mundo real serão cada vez mais desenhados e podem mudar alguns paradigmas na oncologia.
E a preocupação com a consistência dos dados?
Eu acho que a qualidade dos dados não me preocupa. Mais preocupante, a meu ver, é estabelecer critérios irreais de inclusão e exclusão. Não adianta cumprir todos os critérios estatísticos e não funcionar na ponta, que é o paciente. Os estudos basket, por exemplo, ou os estudos do tipo guarda-chuva podem até mudar a visão estatística. Eu não vejo isso como ameaça à qualidade dos dados, muito pelo contrário.
Hoje temos na oncologia combinações que alcançam a cifra de 1 milhão por paciente. A ciência ficou cara demais? Como vislumbrar caminhos mais sustentáveis para inovação e acesso?
Eu acho que o caminho é a medicina personalizada. A gente acha que a medicina personalizada ficou mais cara, mas é justamente o contrário. Você selecionar o paciente do ponto de vista molecular para receber o tratamento mais adequado, essa é a medicina mais barata que existe, porque é aquela que funciona. Não dá para desperdiçar dinheiro nem desperdiçar medicamentos. A seleção molecular é um caminho mais racional e a medicina personalizada é o futuro da oncologia clínica.
Estudo que avaliou aprovações recentes do FDA identificou que parcela dos antineoplásicos foi aprovada com braços-controle sub-ótimos. Como otimizar a qualidade da pesquisa em câncer e garantir resultados confiáveis para a comunidade médica e pacientes? (doi:10.1001/jamaoncol.2019.0167).
Eu acho que uma questão delicada é o uso de placebo. É inadmissível hoje, no século 21, com tantos recursos, oferecer um braço placebo para um paciente de câncer, principalmente para um paciente metastático, como era o caso de 18 dos estudos listados aqui com braços-controle sub-ótimos. O caminho, volto a dizer, é a medicina personalizada, assim como os estudos basket. Conseguiríamos otimizar recursos com resultados mais consistentes se a gente selecionasse primeiro o perfil molecular do paciente participante de pesquisa.
Isso seria aplicável na rotina dos serviços? Ouvimos relatos de que até uma imuno-histoquímica é difícil no Norte do Brasil, o que dirá um painel molecular?
Claro que Barretos é uma ilha de excelência, mas imuno-histoquímica não é um exame caro. Devemos buscar esse acesso, fazendo o Estado entender que na verdade vai economizar dinheiro se fizer um uso mais racional. Não tem sentido hoje um centro trabalhar sem testar o perfil do paciente. A gente quer oferecer a medicação para o paciente que vai obter o máximo benefício e não fazer uso fútil, oferecendo um agente de alto custo para o paciente que não vai ter benefício algum. Não conheço a realidade dessas instituições no extremo Norte, mas acho importante mostrar para o Estado que esse é um dinheiro bem investido, com impacto na qualidade de vida e sobrevida da população. As instituições também têm responsabilidade de brigar por exames básicos para o paciente.
Pesquisa e epidemiologia do câncer no Brasil, como estamos?
Como eu disse, trabalho em um oásis. Aqui no hospital temos registro de câncer e nossa base de dados é muito bem apurada. No entanto, o que a gente vê com dados oficiais é que os números não batem. Infelizmente, muitos registros não estão devidamente atualizados e os sistemas de informação em câncer precisam avançar muito, precisam ser aprimorados.