Em entrevista exclusiva, o oncologista André Marcio Murad (foto), diretor científico do Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão (GBOP), fala de temas que estão na fronteira da pesquisa e assistência em câncer. Em pauta, avanços e perspectivas da oncogenética e oncogenômica no diagnóstico, tratamento e seguimento do câncer.
Mineiro de Lavras, no Sul do Estado, Murad é um entusiasta da oncologia de precisão e acompanha de perto a evolução que tem reconfigurado o diagnóstico e tratamento do câncer. “Agora, muito além da imunohistoquímica e das técnicas de FISH (hibridização in situ fluorescente) ou PCR-RT (reação de polimerase em cadeia em tempo real), as análises evoluíram para exames mais complexos e sofisticados”, explica André Márcio Murad. É o caso das plataformas para o sequenciamento de nova geração (NGS) e os exames por PCR digital, como dd-PCR (digital em gotas) e o BEAMING (beads, emulsions, amplification and magnetics).
Sem dúvida, um novo paradigma. “Hoje, tanto o SUS quanto os convênios privados precisam entender que esses testes não são um custo adicional. Ao contrário, ajudam a racionalizar recursos. Fica muito mais barato custear um teste genético do que pagar um medicamento de alto custo para um paciente que não vai ter resposta”, diz Murad. Nesta entrevista, o especialista enfoca caminhos e desafios para a medicina de precisão.
Oncogenética e oncogenômica ainda parecem conceitos pouco difundidos entre médicos envolvidos nos cuidados em câncer. Como vencer essa lacuna?
Vários fatores ajudam a explicar esse gap, mas na minha opinião três são os principais: a velocidade com que esses conceitos e tecnologias foram incorporados à prática, sua complexidade e, por outro lado, a deficiência do ensino de genética básica e genética aplicada na grade curricular dos cursos de medicina e nos programas de residência e especialização em oncologia. Como boa parte da prática hoje envolve oncologia de precisão, oncogenômica e oncogenética, os oncologistas já formados e em formação precisam complementar seu conhecimento buscando cursos, imersões e educação continuada nestas três áreas da ciência médica. Para vencer essa lacuna, a médio prazo precisamos incorporar essas matérias na grade curricular dos cursos de medicina e nos programas de residência médica em oncologia. Hoje, temas relevantes para a oncologia de precisão não podem mais ficar à margem da formação médica. É o caso da genética básica, da seleção dos testes genético-moleculares mais apropriados para cada situação clínica e como interpretá-los; da decisão terapêutica sobre a melhor escolha de drogas alvo-moleculares e imuno-oncológicas, enfim, são temas que estão na rotina da oncologia hoje. É fundamental entender as aplicações práticas da biópsia líquida em Next Generation Sequencing (NGS) e em PCR, assim como a importância dos painéis germinativos e somáticos, acompanhar a evolução dos painéis multiômicos e participar da discussão interativa de casos clínicos específicos.
O GBOP veio com a proposta de ampliar essa massa crítica de conhecimento?
Sem dúvida, esse é um dos nossos objetivos. Assim como vários grupos cooperativos brasileiros, o GBOP nada mais é do que a reunião de um grupo de oncologistas dedicados ao estudo e à prática da oncologia de precisão, da oncogenômica e da oncogenética. Nosso objetivo é disseminar conhecimento nessas áreas, além de promover cursos de imersão, simpósios, workshops e eventos científicos variados, em que estes temas possam ser amplamente discutidos e ensinados. O GBOP também deve se estruturar para desenhar, organizar e conduzir de forma multicêntrica estudos e ensaios clínicos nacionais e com cooperação internacional nas áreas de oncogenômica e oncogenética, patrocinados pela indústria e por organismos de fomento. A ideia é valorizar a parceria e o apoio dos demais grupos cooperativos brasileiros. Também queremos nos colocar como opção para a discussão e consultoria virtual de casos clínicos, auxiliando na tomada de decisões. Na prática, são recomendações que envolvem desde a escolha do painel genético mais apropriado para os casos clínicos individuais, até mesmo na sua interpretação e escolha da terapêutica ou conduta mais adequada.
O status dos microssatélites tem sido correlacionado com resposta a inibidores de PARP em tumores com mutações germline. É uma nova fronteira da genômica aplicada ao câncer?
Sim, chegamos na era das indicações agnósticas como, por exemplo, a indicação de imunoterapia para tumores que expressam instabilidade dos microssatélites (MSI-H) ou de drogas-alvo como larotrectinibe para tumores que apresentam fusões dos genes NTRK, independentemente da origem ou histopatologia. Nunca o estudo de biomarcadores foi tão importante para a oncologia. Sabemos que mutações germinativas ou somáticas dos genes do sistema MMR (MLH1, MSH2, MSH6 e PMS2) ou mesmo a sua metilação (fenômeno epigenético) propiciam esta instabilidade nos microssatélites por deficiência de reparo das repetições em tandem dos nucleotídeos. Já tumores com mutações patogênicas, germinativas ou somáticas em genes de recombinação homóloga, como BRCA1 e 2, podem responder aos inibidores da enzima PARP, como ocorre no câncer de ovário, tanto no tratamento da doença avançada como na terapia de manutenção, no câncer de mama e também em tumores de pâncreas. Estudos com inibidores de PARP em câncer de próstata são promissores e estão em andamento.
Por falar em nova fronteira, quais os prós e contras da biópsia líquida?
A biópsia líquida é uma tecnologia minimamente invasiva para a detecção de biomarcadores moleculares sem a necessidade de procedimentos mais invasivos, como biópsias e cirurgias, e que permite aos médicos descobrir uma série de informações sobre uma doença ou um tumor, através da extração de uma simples amostra de sangue. Células tumorais circulantes ou traços do RNA ou do DNA tumoral no sangue podem fornecer informações valiosas sobre quais tratamentos são mais prováveis e efetivos para o paciente. Novos métodos dedicados permitem, a partir da biópsia líquida, enriquecer e purificar o DNA livre circulante (cfDNA), células tumorais circulantes (CTCs), micro-RNA (miRNA) circulante e microvesículas extracelulares (incluindo exossomos) contendo miRNA e DNA. O recente interesse em ácidos nucléicos no plasma e no soro também abriu áreas de investigação e novas possibilidades para o diagnóstico molecular. Em oncologia, alterações genéticas derivadas do tumor, alterações epigenéticas e ácidos nucleicos virais são encontrados no plasma/soro de pacientes. Esses achados têm implicações importantes para a detecção, monitoramento e prognóstico de muitos tipos de câncer. Então, além de ser um teste não invasivo e que, portanto, pode ser realizado várias vezes, o que é fundamental na monitorização do tratamento, a grande vantagem da biópsia líquida é oferecer uma análise genética em tempo real de um determinado tumor, ou seja, seu "retrato" genômico atual. Os tumores frequentemente apresentam heterogeneidade, com assinaturas genômicas distintas dentro do mesmo tumor e nas metástases, sincronicamente e durante a evolução da doença metastática. Isso significa que tumores de mama, por exemplo, podem perder ou ganhar uma hiperexpressão da proteína HER2 e tumores de cólon podem ganhar uma mutação de BRAF. Essas informações não serão encontradas na análise apenas do tumor primário e ambas são decisivas na troca da terapia, daí o valor da biópsia líquida. As desvantagens da biópsia líquida recaem principalmente em seus índices de falso-negativo, que variam entre 20 e 29%, dependendo da sensibilidade da metodologia. Por isso, a técnica empregada deve ser a que propicia maior sensibilidade, como captura híbrida ou sequenciamento profundo (deep sequencing) nas biópsias em NGS e, se em PCR, preferencialmente o digital (digital em gotas ou o BEAMING). Entretanto, hoje sabemos que há possibilidade de ocorrer também resultados falso-positivos, pois determinadas mutações encontradas podem ser germinativas ou mesmo resultantes da hematopoese clonal. Essas mutações em geral ocorrem nos genes JAK1 e 2, TP53, RB1 e KRAS. Por isso, a interpretação dos resultados deve ser feita sempre por especialistas em oncogenômica e bioinformática.
A oncologia personalizada esteve presente em diferentes sessões da ASCO, em ano que reforçou a necessidade de novos biomarcadores preditivos e com valor prognóstico. Que lições ficam da ASCO 2019?
Exatamente. Na ASCO deste ano tive a nítida impressão de que o que era até recentemente uma promessa, tem se tornado efetivamente uma realidade: a oncologia de precisão. O câncer é fundamentalmente uma doença dos genes. Portanto, estudá-los corretamente é um passo decisivo para a adequada implementação de estratégias de prevenção, rastreamento, diagnóstico e tratamento. A velha máxima de se fazer "tudo igual para todo mundo" está sendo progressivamente substituída pela medicina de precisão, aquela que define as doenças de acordo com seu perfil individual, composto por características genéticas e epigenéticas. É isso que permite individualizar e personalizar as condutas, tanto na prevenção, quanto no diagnóstico e tratamento. Os biomarcadores nunca foram tão estudados como agora para prognosticar, estratificar grupos de risco e, principalmente, para agregar um plano de tratamento mais efetivo. Os biomarcadores tanto podem indicar como contraindicar um tratamento específico. Na ASCO deste ano foi apresentado um estudo que sugeriu novos biomarcadores de resistência à imunoterapia em câncer de pulmão não pequenas células: os genes STK11 e o KEAP1. Já o estudo POLO comprovou o benefício da manutenção de olaparibe no tratamento no câncer de pâncreas BRCA mutado, após uso de regimes à base de platina. Os biomarcadores corretos são ferramenta imprescindível para a melhor prática da oncologia de precisão. Isso otimiza os resultados para os pacientes, com economia de recursos.
Assinaturas moleculares, avaliação de risco e seleção terapêutica no câncer de mama, qual o cenário hoje?
Assinaturas moleculares me parecem já bastante consolidadas para estratificação de risco em pacientes com câncer de mama inicial, com tumores positivos para receptores hormonais. São plataformas que, além de prognosticar, ajudam a indicar a correta utilização ou não de quimioterapia adjuvante associada à hormonioterapia. Também são marcadores tradicionais a pesquisa de receptores hormonais e de hiperexpressão de HER2 por métodos simples, como a imuno-histoquímica. São imperativos na tomada de decisão terapêutica e selecionam para a utilização de agentes hormonais, quimioterápicos e drogas anti-HER2. Mais recentemente temos também a indicação aprovada da imunoterapia associada à quimioterapia nos tumores metastáticos triplo-negativos. Entretanto, outros biomarcadores despontam no horizonte e já começam a ser incorporados na prática clínica, como as mutações de BRCA para indicação dos inibidores de PARP, as mutações de PIK3CA para indicação de inibidores do PI3K associados ao fulvestranto, o MSI-H também para a indicação de imunoterapia, sem esquecer das mutações de ESR1, para prever resistência aos inibidores da aromatase. Outra importante e promissora aplicação no tratamento do câncer de mama é a biópsia líquida. Além de avaliar todos esses marcadores, como PIK3CA, ESR1, BRCA1 e 2, a biópsia líquida pode determinar se um tumor inicialmente HER2 negativo se tornou positivo e vice-versa. É o chamado HER 2 Flip Flop, que pode ocorrer em até 15% dos casos, com óbvia repercussão no tratamento dessas pacientes. Também são promissores os estudos de biópsia líquida com CTC para estratificação prognóstica e indicação de quimioterapia adjuvante.
O que o oncologista precisa saber sobre genes moderadamente penetrantes?
Penetrância é a porcentagem de indivíduos com determinado alelo, dominante ou recessivo, que exibem o fenótipo associado a ele. Já a expressividade mede o quanto determinado alelo é expresso em um fenótipo e é, portanto, uma medida de intensidade. Quando há penetrância variável, a genética é mascarada: indivíduos com um dado alelo não apresentam o fenótipo associado a ele. Então, o valor da penetrância é atribuído a uma população - tantos porcento da população tem o fenótipo associado ao alelo - e já o indivíduo tem ou não tem a determinada característica. Mas a penetrância variável ou incompleta pode ocorrer por uma série de fatores. Primeiro, pela influência do meio ambiente, a epigenética. Ocorre também pela influência de outros genes, que de maneira ampla fazem parte do ambiente e, ainda, pela sutileza do fenótipo mutante. O exemplo clássico de genes de penetrância variável em oncologia são os genes de recombinação homóloga, que predispõem aos cânceres de mama, ovário, pâncreas e próstata: enquanto os genes BRCA 1 e 2 apresentam alta penetrância, os demais componentes deste sistema, como ATM, PALB2, CHEK2 ou RAD51, apresentam penetrância moderada. Por isso as recomendações de mastectomia ou ooforectomia são consistentes para as mulheres com mutações patogênicas de BRCA 1 e 2, mas não para as demais.
E sobre variantes de significado indeterminado (VUS)? Antes ainda, que painel pedir? São dúvidas presentes na prática médica?
Sim, ambas as dúvidas são comuns: como interpretar uma VUS e qual o tamanho do painel (germinativo e somático) a ser solicitado. Uma variante de significado desconhecido (VUS) não é um resultado negativo, mas sim um resultado indeterminado e deve ser tratada como tal: potencialmente patogênica ou benigna. Aconselhar o paciente a respeito da possibilidade de se encontrar uma VUS antes do exame é uma prática sensata. Alguns laboratórios relatam achados de VUS; outros não relatam ou o fazem de forma seletiva. Quando solicitar um exame, o médico deve pedir ao laboratório que deixe claro se um resultado de VUS será ou não relatado. A interpretação de variantes é baseada em informação que está disponível no momento do exame na literatura médica e nos bancos de dado específicos, como, por exemplo, o CLINVAR do NCBI - National Center for Biotechnology Information. Com o tempo, à medida que mais informações se tornam disponíveis, a classificação pode mudar. Ao escolher um laboratório, políticas a respeito da frequência com que ele reclassifica as variantes devem ser esclarecidas, assim como seu procedimento para notificar os médicos quando um resultado laboratorial muda. A maior parte das VUS se confirmará como benignas. Alguns laboratórios já fornecem exames para os pais ou para parentes próximos que tiveram câncer, sem custos adicionais, para tentar esclarecer a patogenicidade da VUS. Para profissionais de saúde que não se sentem confortáveis em encontrar informações sobre exame genético ou em interpretar os resultados, consultar um profissional em genética, como o oncogeneticista, é sempre recomendável. Quanto à dúvida frequente sobre que painel pedir, em geral o questionamento maior é sobre a abrangência: genes isolados ou painéis multigênicos. Para a suspeita de síndromes hereditárias de predisposição ao câncer, a recomendação é fazer o teste inicial com painéis multigênicos, que em geral possuem entre 20 a 30 genes, a não ser que o fenótipo seja bastante sugestivo do que deverá ser encontrado ou quando a epidemiologia sugerir mutações específicas. É o caso das mulheres com ascendência judia Ashkenazi e suspeita de síndrome hereditária de cânceres de mama-ovário. Estudos comparativos mais recentes têm comprovado o custo-beneficio favorável dos painéis multigênicos. Quanto aos painéis somáticos, é importante entender que os avanços no entendimento das alterações genéticas tumorais ocorreram muito rápida e profusamente. As tecnologias para identificá-las se estenderam muito além dos tradicionais exames de imunohistoquimica, FISH (hibridização in situ fluorescente) e PCR-RT (reação de polimerase em cadeia em tempo real para amplificação e identificação de variações e mutações gênicas). Esses são testes já empregados pela comunidade oncológica brasileira, por exemplo, para a identificação de hiperexpressão ou amplificação de HER2, mutações de EGFR, RAS e BRAF, além da fusão de ALK e ROS1. Hoje isso evoluiu para exames muito mais complexos e sofisticados, como o sequenciamento de nova geração (NGS) e os exames por PCR digital, como dd-PCR (digital em gotas) e o BEAMING (beads, emulsions, amplification and magnetics).
PERFIL: Diretor Clínico da Personal Oncologia de Precisão de Belo Horizonte; Professor Adjunto-Doutor Coordenador da Disciplina de Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-Doutor em Genética e Diretor Científico do GBOP, Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão.