Em entrevista exclusiva, o oncologista Elias Abdo (foto), chefe do serviço de oncologia ginecológica do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e médico da Oncologia D`Or, discute temas que vão da importância da prevenção e diagnóstico precoce à revalorização da pesquisa científica. O especialista também destaca alguns dos estudos em ginecologia oncológica que devem concentrar as atenções no congresso da ASCO esse ano, edição que conta com sua participação como coautor do estudo de Fase III SOLO2, avaliando o inibidor da PARP olaparibe no tratamento de manutenção em pacientes com câncer de ovário recidivado sensível à platina BRCA-mutado.
A importância da prevenção e diagnóstico precoce na oncoginecologia, como podemos avançar?
Sem dúvida, essa é uma questão muito importante. Primeiro, porque falta educação continuada tanto para a rede básica de saúde, quanto para a população em geral. Aqui, estamos falando principalmente do câncer do colo uterino, que nos preocupa pelo enorme impacto na população brasileira. Poderíamos ter resultados muito melhores, mas infelizmente o Brasil ainda convive com o diagnóstico tardio. Significa que as pacientes não fazem o exame de Papanicolau conforme as recomendações e mostra que falhamos também na oferta e na divulgação da vacina contra HPV. Na outra ponta, a falha é na continuidade do tratamento dessas pacientes, porque evidentemente não é só ter o diagnóstico, ela tem que ter acesso ao tratamento. E essa realidade no Brasil não é só no cenário do câncer do colo do útero. Quando a gente olha para outros cânceres ginecológicos, os desafios também existem. Veja no câncer de ovário, uma doença silenciosa aqui e no mundo inteiro, porque não há ainda um meio de rastreamento ou de detecção precoce. Na doença do endométrio o diagnóstico oportuno fica um pouco mais fácil, porque a paciente tem o sangramento na menopausa, mas mesmo com sinais clínicos ela tem que ter acesso e educação continuada para receber assistência. Temos dados estatísticos mostrando que o acesso é desigual, com diferenças importantes entre as regiões do Brasil. Sabemos que a região Norte, por exemplo, é muito carente, por várias razões. Imagine a dificuldade de acesso em uma região como a Amazônia. Mas mesmo quem milita em hospitais da Grande São Paulo percebe claramente os desafios do acesso. Muitos pacientes são migrantes de várias regiões brasileiras e correm bastante para conseguir assistência médica aqui. Com relação à assistência privada, a triagem pode até ser melhor, mas na vacinação contra HPV ainda avançamos pouco. Precisamos melhorar muito a nossa taxa de cobertura vacinal contra HPV, entendo que a comunidade médica certamente tem seu papel. Os estudos mostraram que a vacina é segura e eficaz, porque realmente protege contra o câncer do colo do útero e previne contra diferentes tipos de câncer relacionados ao HPV. A batalha é por ampliar a cobertura vacinal. É só olhar a Austrália para ver que ampliando a cobertura vamos ver resultados com o passar dos anos. Aqui, falta ainda essa conscientização.
Temos dificuldades históricas, mas por outro lado temos a chegada de inovações, como os inibidores de PARP. É um novo paradigma?
Exatamente. Os inibidores de PARP são avanços mais relacionados ao câncer de ovário, em pacientes com características clínicas de tumor seroso de alto grau. São pacientes com história familiar indicando a presença de mutação germinativa, outras vezes são pacientes com mutações no tumor, por isso a recomendação de realizar testes germinativos e somáticos, sempre que possível. Também existe um perfil de pacientes que tem deficiência de recombinação homóloga e igualmente pode se beneficiar dessa classe de medicamento. Em resumo, é uma medicação que vem com um papel para uma determinada porcentagem da população. No Brasil, somos resultado de uma mistura de raças e no meio dessa miscigenação existe um subgrupo de pacientes que vai se beneficiar. É um novo paradigma, daí a importância dos testes genômicos e da abordagem multiprofissional. Temos feito um esforço muito grande no ICESP de valorizar reuniões multiprofissionais, inclusive envolvendo médicos do Brasil todo, para que conheçam o serviço, que sintam na prática como funciona essa educação continuada permanente que a gente procura fazer. Cada vez mais é essa integração que leva o melhor padrão de cuidado ao paciente. O ginecologista generalista começa a entender qual o caminho para a paciente chegar ao serviço de referência. Existem evidências robustas indicando que o tratamento dessas pacientes tem hoje a terapia orientada por esses testes. Na assistência privada, algumas operadoras exigem que o teste seja feito por um geneticista, o que acaba limitando. Existem evidências tão robustas que na minha opinião aquele oncologista com preparo em oncogenética também pode se capacitar.
A moderna imunoterapia, com os Inibidores de checkpoint imune, tem sido apontada de forma recorrente pelos progressos na oncologia, mas reacende o debate de custo e valor. Qual o cenário nos tumores ginecológicos?
Há cenários em que inibidores de checkpoint imune (ICI) tem seu papel; outros não. Em câncer de cérvix uterina começaram a sair alguns estudos, mas nada ainda que motive mudança de conduta. No câncer de endométrio recorrente, aí sim existe um perfil de população que se beneficia da imunoterapia. São pacientes cujos tumores têm instabilidade de microssatélites e que na segunda linha podem receber o esquema lenvantinibe e pembrolizumabe. A grande pergunta ainda é no perfil de pacientes com câncer de ovário, porque temos muitos estudos com diferentes associações e todos eles têm resultados modestos. Nenhum mostrou ainda resposta robusta. Em resumo, ICI têm papel relevante inicialmente em câncer de endométrio com instabilidade de microssatélites. Temos vários estudos abertos no ICESP e é claro que incentivamos a pesquisa clínica. Através da pesquisa temos a oportunidade de construir conhecimento real, com a nossa população. Mas até que esse conhecimento esteja sólido, prefiro aguardar, porque a questão de custo e valor é realmente uma preocupação. Em todos esses anos de prática médica eu sempre procurei me pautar pela melhor evidência e a boa ciência não tem pressa.
Warm up: o que esperar da ASCO este ano?
Vou ser tendencioso, porque embora esteja atuando também em mama, acho que vamos ter estudos muito aguardados no câncer ginecológico. Posso destacar, por exemplo, o SOLO2 com o inibidor de PARP olaparibe. Como investigador, sei da importância de aguardar a apresentação, mas posso dizer que vai ser um highlight do programa científico, com resultados de impacto na nossa prática. Eu queria destacar também estudos que envolvem cirurgia, como o DESKTOP III, que investiga a recidiva do câncer de ovário, com a reabordagem cirúrgica de pacientes que foram sensíveis à platina, além de estudo chinês que avaliou a citorredução em pacientes com recidiva tardia, e de um terceiro estudo, ratificando a importância da abordagem do linfonodo sentinela no câncer do colo uterino. Outro destaque também envolve radioterapia, em estudo que comparou quimiorradioterapia versus radioterapia isolada em tumores iniciais. A gente não tinha essa evidência de estudo prospectivo e agora saiu esse dado. O impacto de você adicionar um agente citotóxico foi positivo também em pacientes operados, potencializando a ação da radioterapia.
Agora gostaria de saber do senhor como foi estar na linha de frente como pesquisador, representando o Brasil em um estudo multicêntrico?
É muito gratificante, mas o caminho é árduo. Temos uma grande equipe envolvida, porque evidentemente temos implicações regulatórias, temos as análises do comitê de ética em pesquisa, questões burocráticas. Durante muito tempo o Brasil infelizmente chegava atrasado, por uma série de problemas. Aos poucos fomos conquistando um espaço maior. Hoje, observo que a gente vem recebendo cada vez mais propostas de estudos internacionais. Fico muito feliz com a expansão da pesquisa clínica brasileira e não digo só pela participação no SOLO2, porque outros estudos estão chegando. É um esforço colaborativo, porque ninguém faz nada sozinho. O resultado é uma cadeia positiva de contribuição e de conhecimento. Estamos muito orgulhosos de ter essa grande equipe, que tantas vezes superou dificuldades. Temos a participação de profissionais que se dedicam, que fazem tudo acontecer dentro dos prazos necessários, que mantêm documentos em dia dentro de rigorosos critérios, porque reportar os dados de cada participante da pesquisa é coisa muito séria. Enfim, temos construído esse caminho, queremos incentivar os pacientes a participar e queremos fomentar grupos colaborativos, com participação de diferentes instituições brasileiras. Nesse momento de dificuldade, o mundo inteiro desperta para essa revalorização das instituição de Ciência e Pesquisa. Queremos ter também os nossos estudos, para conhecer a nossa realidade e dar respostas importantes aos pacientes brasileiros.
Para encerrar gostaria de explorar a perspectiva de carreira médica. Que lições ficam dessa trajetória?
Primeiro, fica o olhar sobre o paciente, porque eu não faço distinção do ser humano de hospital privado, daquele atendido no serviço público. Quando você está no público você precisar estar integralmente ali, voltar a sua atenção 100% para a assistência do paciente do SUS. A dedicação precisa ser integral, é estar 100% ali, não tem desvio. A mesma regra vale para a atuação no sistema privado. Quando estiver ali, o médico tem que ter dedicação exclusiva. Hoje, ao longo desses quase 40 anos de carreira, eu vejo que muita coisa mudou. Existe uma saturação, aumentou muito a formação de oncologistas. Como consequência, os residentes ficam um pouco assustados com o que vem por aí. A minha orientação é seguir caminhos que permitam uma abertura maior, como a pesquisa, a oncogenética. Outro caminho sem volta é a especialização. A oncologia se tornou mais complexa e hoje você precisa focar em uma ou duas subespecialidades. O que o Brasil precisa hoje é da figura do oncologista assistencialista em todos os cantos, comprometido com a qualidade da assistência.