Carlos Chiattone (foto), nome de referência na oncohematologia brasileira, destaca avanços e tendências que reconfiguram o ambiente de pesquisa e assistência. Confira a entrevista exclusiva.
Que avanços recentes marcam o tratamento dos linfomas?
Na última década, tivemos um avanço brutal e o maior salto foi na compreensão da biologia. Foi esse conhecimento biológico, esse conhecimento da genômica, que trouxe impacto sem precedentes não só no tratamento dessas doenças, mas também no prognóstico, principalmente na leucemia linfocítica crônica e no linfoma difuso de grandes células B. Esse é um ponto muito relevante. O segundo aspecto é o avanço no próprio tratamento, considerando os progressos em quimioterapias, em transplante, as terapias-alvo e a imunoterapia, agora com os inibidores de checkpoint imune e as CAR-T cells. No meio de tudo isso cabe destacar que uma droga muito antiga, ainda dos tempos do muro de Berlim, voltou ao cenário de tratamento, que é a bendamustina. O que podemos esperar? Claro que os quimioterápicos, mesmo com o conhecimento da epigenética, não serão o futuro. O impacto do transplante alogênico não é resultado da quimioterapia, mas do efeito imune. Esse conceito, de entender o transplante como estratégia de imunoterapia, levou ao transplante alogênico não mieloablativo, que representou outro avanço muito importante. Hoje você tem a possibilidade de usar células de doadores não relacionados, células de cordão umbilical e até de realizar o transplante haploidêntico, que permite apenas uma fita de compatibilidade. Claro que nesse caso a reação enxerto contra hospedeiro é um pouco maior, mas é um transplante muito efetivo em algumas doenças, como no Hodgkins. O terceiro ponto são as terapias-alvo, área em que testemunhamos uma evolução muito grande, principalmente no tratamento dos linfomas difuso de grandes células B. O princípio é bloquear as vias de sinalização por onde se desenvolvem as células neoplásicas. Com esse mecanismo temos agentes que inibem a tirosina-quinase de Bruton, como o ibrutinibe, as terapias-alvo que inibem a via PI3K e aquelas que inibem a via bcl-2, que regula a apoptose celular, como o venetoclax, por exemplo. Por último, a imunoterapia. No final dos anos 90 tivemos o primeiro anticorpo monoclonal para uso no tratamento do câncer, que foi o rituximabe, um anti CD-20. Hoje evoluímos para o desenvolvimento de anticorpos monoclonais de segunda geração, como é o caso do obinutuzumabe, um anti CD-20 mais moderno. Mais recentemente temos os anticorpos droga-conjugados, como o brentuximabe-vedotin, em Hodgkin, assim como temos os inibidores de checkpoint imune e as tecnologias com CAR-T cells, hoje as grandes tendências na pesquisa em câncer.
E na avaliação de resposta, também avançamos?
Sem dúvida alguma. Veja, por exemplo, o PET-CT, que é muito útil no diagnóstico e estadiamento, mas também é uma ferramenta fundamental no seguimento do paciente. Em boa parte dos linfomas você pode prescindir da biópsia da medula óssea, porque o PET-CT é suficiente e ainda consegue identificar mais lesões extranodais. Há um grande avanço também na utilização do PET-CT como ferramenta prognóstica. Aquele paciente que depois de 2 ou 3 ciclos já fica negativo tem um prognóstico favorável e, neste caso, talvez você possa inclusive fazer menos quimioterapia. O contrário, no entanto, também é verdadeiro, portanto, o pet interino é um passo muito importante na equação de tratamento desses pacientes. Nós estamos olhando cada vez mais de perto a resposta, inclusive do ponto de vista molecular. Muitas vezes você tem exames mostrando o desaparecimento da doença, mas sabemos que isso não quer dizer que a doença está extinta. A progressão nos mostra que a doença está ali e não conseguimos identificar. Então, exames que chegam com esse conceito de avaliar a doença residual mínima são muito importantes, marcam essa nova era da biópsia líquida, permitindo um tratamento cada vez mais personalizado. Antigamente só conseguíamos classificar os linfomas pelo aspecto morfológico, era tudo muito primitivo. Hoje podemos ter tratamentos mais efetivos, menos tóxicos e com abordagens muito mais personalizadas.
Microbioma e malignidades hematológicas. Existem lições importantes?
Existem sim. Esse é um tema antigo, mas que de uns tempos para cá tem ganhado importância. Temos inclusive publicações recentes que deixam lições relevantes. A maior parte dos dados vêm do câncer colorretal. Em relação a doenças oncohematológicas, temos dados relativos ao linfoma gástrico, normalmente causado pelo H. pylori. O interessante nesse linfoma é que parte significativa pode ser curada com o tratamento da infecção, quando o diagnóstico é feito na doença inicial. Quem mostrou isso foram os patologistas, com um estudo de caso publicado na New England Journal of Medicine ainda nos anos 90. Nesse trabalho, Peter Isaacson e colegas trataram os pacientes com antibióticos. Ele apresentou os resultados pela primeira vez no congresso de Lugano, mostrou que o câncer se originava de uma infecção e podia ser tratado com antibióticos. Muitos receberam isso com deboche, mas a evidência se confirmou, está aí. Então, o conhecimento evolui. Hoje, o que sabemos é que pacientes que têm uma certa composição da microbiota tem um prognóstico pior, é preciso estar atento a isso. O transplante altera a microbiota, por várias razões. Primeiro porque o paciente usa muito antibiótico; segundo, porque ele tem mucosite e fica com a mucosa intestinal alterada. A terceira razão é porque durante o transplante o paciente muda muito a sua dieta. Então, temos todo um cenário que leva a mudanças importantes na microbiota. Em breve, os médicos e profissionais de nutrição vão ter abordagens com nutracêuticos, por exemplo. Outra tendência são os implantes fecais que devem ajudar a repovoar a flora intestinal.
Na oncohematologia, como é o diálogo com a atenção primária para evoluir no diagnóstico precoce?
Primeiro quero deixar claro que a minha posição é a favor do SUS e dessa hierarquização em níveis de atenção, como acontece no Canadá de forma muito consistente, como acontece na Inglaterra, como acontece em todo lugar do mundo que presta bons serviços em Saúde. A base tem que ser essa. Se essa pandemia nos deixa uma lição, é no sentido de valorizar o Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, que é extremamente relevante. Então, você precisa ter na rede básica médicos muito bem treinados, atualizados e amparados por protocolos. Isso é um preâmbulo para eu dizer do desastre que ocorre hoje com muita frequência na linha de frente. Quando o médico tem dúvida sobre um linfonodo, ele faz um pedido para que esse linfonodo seja examinado. E o que se faz na rede básica com muita frequência é a punção com agulha fina, que hoje está absolutamente contraindicada na hipótese de linfoma. É um equívoco técnico você indicar ou pedir uma punção com agulha fina diante da suspeita de um linfoma, primeiro porque não dá diagnóstico, se tanto dá um diagnóstico muito genérico. Depois, é importante considerar que com esse processo todo você perde bons pares de meses no serviço público, o que significa que tudo isso ainda atrasa muito o tratamento no caso dos linfomas.
Conflito de interesses na relação com as farmacêuticas, qual a sua visão?
Existem questões que não são de interesse da indústria. Nenhuma farmacêutica vai desenhar um estudo para diminuir a dose de determinado medicamento, porque evidentemente existem interesses econômicos. Esse é só um exemplo, entre tantos outros. O marketing da indústria tem por dever de ofício vender remédio, portanto suas ações serão pautadas por esse princípio. Então, eu entendo que os contatos devem ser com a área médica e não com as áreas de marketing da indústria farmacêutica. Entendo também que precisamos de mais estudos de iniciativa do investigador, o que é muito importante na nossa realidade. Por outro lado, está claro que os governos precisam investir para financiar mais fortemente a pesquisa clínica.