Onconews - Um novo paradigma

ON16_PG6_ENTREVISTA_CLARISSA_OPCAO1_NET_OK.jpgA oncologista Clarissa Mathias (foto), médica do Núcleo de Oncologia da Bahia (NOB), do Grupo Oncoclínicas, e presidente do Grupo Brasileiro de Oncologia Torácica (GBOT), fala de carreira, comenta a presença feminina na prática médica e o cenário do câncer de pulmão no Brasil.

Onconews: O câncer de pulmão entrou na era da imunoterapia e da terapia-alvo. É um novo paradigma?
Clarissa Mathias: Com certeza. Os dados em relação à sobrevida alcançada no câncer de pulmão, tanto com imunoterapia quanto com drogas-alvo em pacientes mutados, eram impensáveis até bem pouco tempo. Durante toda a década de 80 e até os anos 90, o que se via era uma sobrevida mediana de oito meses. Quando a gente vê estudos mostrando sobrevidas superiores, de 15 meses, 16 meses, alguns estudos mostram até 20 meses de mediana de sobrevida em primeira linha, tudo isso é sem dúvida um novo paradigma. O que temos hoje é uma revolução. E temos visto ganhos importantes também em linhas de tratamento posteriores, o que é muito significativo para o paciente com câncer de pulmão, que tem uma série de comorbidades. Os estudos com terapia-alvo com inibidores de EGFR têm mostrado que você consegue melhorar a qualidade de vida desse paciente mutado de forma significativa.
 
Alguns especialistas falam em cura funcional, é também um novo conceito?
Temos pacientes com muitas comorbidades e que conseguem alcançar longos períodos de sobrevida com funcionalidades importantes. São pacientes que retomam suas atividades, mantêm vida sexual ativa e que planejam, por exemplo, uma rotina de exercícios. Significa claramente que essa população com câncer de pulmão ganhou qualidade de vida com as novas estratégias de tratamento.
 
Diante de tantas novidades, ficou mais difícil definir a melhor sequência terapêutica?
Temos algoritmos que amparam essa decisão. O que é mandatório é o teste do ponto de vista molecular. Todo paciente com adenocarcinoma e alguns pacientes selecionados com carcinoma epidermoide, aqueles muito jovens ou ainda pouco representados nos estudos clínicos, para todos esses casos o teste molecular é indispensável. A partir daí você abre outro algorítmo. Se o paciente tiver uma mutação EGFR, ele tem que receber uma terapia-alvo de primeira ou segunda geração; se ele tiver uma translocação de ALK ou de ROS, vai receber crizotinibe. Para outros pacientes não mutados, só temos no Brasil a quimioterapia baseada em platina. Cada oncologista vai escolher o que está mais próximo da sua realidade, tanto em termos de facilidade de acesso, quanto em função da sua própria experiência prática e de um conhecimento extenso sobre os efeitos colaterais relacionados aquele quimioterápico.  E é importante lembrar que o oncologista evidentemente não está sozinho. A assistência em câncer de pulmão é complexa e o tratamento dessa população tem que ser sempre multidisciplinar, porque são pacientes com várias comorbidades. Tem que envolver o pneumologista, o paliativista também precisa fazer parte do tratamento desde o início, assim como a fisioterapia, enfermagem, farmácia, enfim, toda uma equipe precisa estar na linha de cuidados para que o paciente tenha um manejo de vida com qualidade. Em alguns casos, só podemos oferecer no Brasil a quimioterapia, como no câncer epidermoide não mutado, e infelizmente não tivemos ainda grandes mudanças em pequenas células.
 
É paradoxal pensar em tratamentos de altíssimo custo, diante de uma realidade como a nossa?
Essa questão de custo e acesso está presente no mundo inteiro. A ASCO tem mostrado essa preocupação, a própria Organização Mundial de Saúde tem repetidas vezes buscado fóruns para debater o acesso a essas drogas, mas não há nenhum sistema financeiro do mundo que consiga oferecer acesso de forma indiscriminada. Você tem que encontrar a população que vai se beneficiar desses medicamentos. Se não encontrar esse nicho você vai estrangular o sistema. O problema é que aqui no Brasil quando essas drogas vão ser acessíveis no Sistema Único de Saúde realmente é uma incógnita.  As conquistas têm sido lentas, a passos de tartaruga.
 
Que caminhos podem ser mais sustentáveis e permitir o acesso ao melhor padrão de cuidados em uma doença tão severa como o câncer de pulmão?
Acho que a grande saída para o Brasil e um caminho que eu advogo muito é através da pesquisa clínica. O Brasil tem pesquisadores capacitados, que são reconhecidos e que já foram auditados pelo FDA. O que a gente precisa é destravar a questão burocrática para que o tempo de aprovação dos protocolos seja bastante encurtado e o Brasil seja competitivo novamente. Há 15 anos conseguíamos aprovar um protocolo com muito mais agilidade e o Brasil estava mais presente na pesquisa clínica mundial. Temos um potencial enorme, podemos ser um dos maiores recrutadores do mundo em vários estudos.
 
Mas é pesquisa ou é assistência?
Eu acho que a pesquisa clínica é uma excelente maneira de você levar o melhor tratamento possível para o paciente que está no Sistema Único de Saúde porque o seu braço-controle precisa ser o melhor tratamento disponível, assim como existem grandes chances de que seu braço experimental também seja melhor.  Então, se você estiver dentro de um centro que siga todos os padrões de segurança, esse paciente sem dúvida vai receber um tratamento melhor do que aquele que está somente utilizando as drogas disponíveis dentro do SUS.
 
Fala-se da ‘feminização’ da medicina. Qual a sua opinião sobre esse novo perfil de profissionais?
A minha geração viveu essa transição, com a presença e participação cada vez maior de mulheres na medicina. Hoje você vê que é maciça a presença feminina nas escolas médicas, nos programas de residência, enfim, as mulheres estão aí em todas as áreas, algumas são líderes de governos e essa é uma realidade. É difícil conciliar os cuidados com os filhos, a gestão da casa, mas por outro lado tudo isso nos traz uma grande vantagem, porque a mulher consegue ser multitask em vários aspectos, muitas vezes com um grau de organização muito grande, ela consegue esse equilíbrio. A ASCO deste ano vai inclusive homenagear uma mulher e isso faz a gente pensar em tantos nomes femininos na oncologia. Você tem Martine Piccard, Francis Shepherd, Margaret Tempero, muitos nomes importantes.
 
Mas existe a visão de que a maior presença da mulher na medicina acontece quando os rendimentos na carreira começam a diminuir, você concorda?
Acho que isso é intriga da oposição. A verdade é que no passado as mulheres não tinham acesso às universidades como acontece hoje. Com a universalização da educação, mais mulheres estão na sala de aula e a prática tem mostrado que são melhores alunas, conseguem acesso ao ensino superior e conseguem fazer a diferença em todas as áreas, não só na medicina.  
 
PERFIL: Clarissa Mathias é médica pela Universidade Federal da Bahia e fez residência em oncologia e hematologia no Medical College of Pennsylvania, onde também cursou residência em medicina interna. É sócia do Núcleo de Oncologia da Bahia, Diretora Técnica do Centro de Oncologia do Hospital Português e membro do comitê internacional da ASCO (2014-2017).