Greyce Lousana (foto), da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica, fala dos desafios e perspectivas da pesquisa clínica brasileira, tema que envolve um emaranhado regulatório e desperta debates acalorados em meio a um cenário de incertezas.
Onconews: Há tempos a comunidade de pesquisa clínica reclama do modelo brasileiro de análise ética. O que está na raiz dessas críticas?
Greyce Lousana: A comunidade científica tem criticado os prazos regulatórios, entende que são muito extensos e que isso não é razoável. Mas se o prazo regulatório é extenso, a raiz disso não se limita aos tempos de análise. A raiz do problema está além, é consequência da própria estrutura do sistema CEP/CONEP, que começa muitas vezes com um comitê de ética despreparado, um centro de pesquisa pouco capacitado para elaborar bons dossiês, com indústrias farmacêuticas que são representadas por algumas CROs, as Clinical Research Organizations, que muitas vezes também não têm um bom preparo para subsidiar esses dossiês regulatórios. Então, o problema não está simplesmente no longo prazo de análise ética, mas começa na própria estrutura do sistema CEP/CONEP que é muito comprometida do ponto de vista do conhecimento, comprometida por interesses, e são razões como essas que acabam tendo essa consequência: o prazo regulatório no Brasil é ruim. Para os pesquisadores, é isso que fica. A grande queixa tem se concentrado no prazo regulatório, mas vejo que o problema é bem mais abrangente, muito maior.
O Senado apresentou um Projeto de Lei. É um caminho que aponta saídas para a pesquisa clínica brasileira?
O Projeto de Lei que se apresenta hoje sofreu uma série de mudanças em relação ao que foi apresentado pela senadora Ana Amélia. No momento, o que está em processo de votação na Comissão de Assuntos Sociais é um substitutivo. E se o objetivo era simplesmente reduzir o prazo regulatório, quando você examina o projeto percebe, por exemplo, que o prazo estabelecido ali é de 30 dias. O PL diz que o projeto de pesquisa será avaliado em uma única instância, o comitê de ética, e estabelece 30 dias. Hoje em dia também temos na regulação um prazo de 30 dias. Mas como eu disse, considerando que os comitês não são muito estruturados, a relatoria é muitas vezes uma questão complicada, assim como o curto tempo de disponibilidade do próprio pesquisador. Então, se a pergunta é se o Projeto de Lei vai resolver a questão de prazo, eu poderia dizer honestamente que não. Eu não sei dizer como o Ministério da Saúde está trabalhando nesse momento com esse último substitutivo, que prevê uma comissão nacional, uma instância nacional de revisão ética. Se o Projeto de Lei fosse aprovado hoje, não sabemos se o governo preparou os alicerces. Será que vou precisar de uma nova Plataforma Brasil? Vou precisar remanejar todos os comitês de ética para uma nova base de registro? O Projeto de Lei fala, de novo, de CEP credenciado e CEP acreditado. O Brasil não tem nenhum CEP acreditado. Então, do ponto de vista ideológico, o Projeto de Lei pode trazer alguns bons resultados, mas do ponto de vista prático eu não saberia dizer o que o Ministério da Saúde está preparando para o momento de aprovação dessa lei.
É um ambiente de muita incerteza?
Sem dúvida. O Conselho Nacional de Saúde aprovou uma resolução para acreditar CEPs no início deste ano e até hoje não conseguiu colocar em prática. Isso mostra a fragilidade do modelo que vivemos hoje. A sensação que eu tenho é que temos uma disputa política, onde o Conselho Nacional de Saúde não quer perder a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e, por outro lado, politicamente tem que ajeitar essa discussão. A Plataforma Brasil continua na mão do DATASUS e continua muito ruim, os Comitês de Ética continuam sem saber o que fazer e o que terão que fazer, não sabem sequer se vão ou não pedir acreditação. Acho realmente que hoje o sistema CEP/CONEP se transformou em uma disputa política muito mais forte, muito mais robusta do que de fato na defesa do participante de pesquisa. Ainda que se utilize o discurso de proteção do participante de pesquisa, o que eu vejo por trás do cenário que envolve o sistema CEP/CONEP hoje é uma disputa política.
Além dos prazos de análise ética, qual a sua opinião em relação aos critérios da CONEP?
É outro ponto que chama a atenção. A CONEP emitia pareceres de uma forma e durante muito tempo, desde sua criação, tinha uma linha de pareceres. Você percebia que isso tinha uma relação muito grande com os membros relatores que lá estavam e muitas vezes o parecer era mais ideológico do que consensuado. Depois, nós tivemos outra fase da CONEP, quando mudam os relatores. Na medida em que mudam os relatores, a CONEP vive uma mudança bastante importante. Isso se percebe claramente a partir de 2012, com uma nova resolução que faz com que a CONEP passe de 15 para 30 relatores. A partir de 2012, passamos a encontrar pareceres de outro tipo, mas ainda muito baseados em princípios ideológicos. De repente, a CONEP contrata pessoas para fazer nota técnica. Aí a gente passa a ter um outro cenário, com notas técnicas feitas por profissionais contratados pelo governo e não necessariamente por profissionais relacionados a questões éticas. Com isso vem também outro tipo de parecer. No final, a gente fica mesmo é sem saber quais são os critérios, se são critérios ideológicos, técnicos, ou se vão depender do pesquisador que manda o projeto. E quando você não tem certeza de que um projeto enviado para uma instância ética vai ser avaliado com base em critérios políticos, em critérios ideológicos ou em critérios que de fato visam a competência técnica do pesquisador, é claro que isso é alvo de crítica. Há um discurso em nome da proteção do participante, mas, por outro lado, muitas vezes você não encontra um critério baseado no currículo do pesquisador, na estrutura que esse pesquisador possui no seu centro de pesquisa, na equipe que esse pesquisador mantém, na metodologia, na forma de acompanhamento desse projeto. Certamente, é um grave problema do sistema.
A ESMO criticou diversos relatórios de segurança e recomendou estudos pós-marketing. É também um cenário desafiador para a oncologia brasileira?
Tudo o que a gente falou até agora leva exatamente a esse cenário, porque se eu tenho um sistema de avaliação tão duvidoso e não há um acompanhamento dos projetos, quem está mesmo preocupado com a segurança do participante de pesquisa? Novamente estamos diante do mesmo problema, porque não é só quanto tempo leva para avaliar, mas como um projeto de pesquisa é avaliado, por quem ele é avaliado, e quem de fato vai fazer o acompanhamento. O projeto pode ter sido aprovado por um comitê de ética, como, aliás, são todos os projetos no Brasil, mas isso não quer dizer que a execução será de fato segura para o participante de pesquisa. Quando a comunidade internacional aponta para resultados duvidosos, para uma falta de informação a respeito de relatos de eventos adversos, onde isso acontece? Acontece no centro de pesquisa. Então, qual é a qualidade dos nossos centros de pesquisa hoje no Brasil e no mundo?
E no cumprimento de boas práticas clínicas, conseguimos avançar?
Vivemos em um país cheio de contradições. Ao mesmo tempo em que eu consigo conversar com alguns pesquisadores que têm uma noção muito clara da realidade, da importância de você seguir boas práticas clínicas, eu ouço outros dizendo que boas práticas clínicas são uma invenção de quem não tem o que fazer. São todos pesquisadores importantes, todos estão dentro de grandes instituições e são titulados. Então, do mesmo jeito que eu encontro dentro dessa comunidade aqueles pesquisadores que preconizam a aplicação das boas práticas, eu encontro outros que não têm noção alguma. Fica difícil até imaginar como em um cenário tão estranho o Brasil conseguiu avançar. Para alguns setores eu não tenho dúvidas de que avançamos muito. Quando eu comparo o Brasil da década de 1980 com o Brasil de hoje, certamente avançamos muito. Nós temos hoje centenas de pesquisadores que sabem exatamente o significado das boas práticas clínicas e, mais ainda, sabem aplicar. E isso resultou em melhoria de qualidade dos prontuários, melhoria na assistência, na forma de tratamento dos pacientes, e agora eu digo de pacientes e não só de quem participa de pesquisa, porque a condução da pesquisa acaba me levando de alguma forma a melhorar a qualidade do meu dado, da minha informação, me obriga a estudar mais, e isso tudo leva a uma melhor qualidade da assistência ou pelo menos deveria levar. Por outro lado, em que pese o avanço, ainda temos muito o que fazer.
E na regulação referente ao registro de medicamentos, tivemos avanços?
A publicação no início de 2015 da RDC 9 e da RDC 10 representou um avanço extremamente significativo por parte da Anvisa. Eu não tenho dúvidas. Acompanho a Anvisa desde que ela foi implementada no Brasil, em 1999, e a Agência hoje é claramente melhor. A criação da Anvisa foi de extrema importância para o Brasil e do ponto de vista técnico a Anvisa viveu um processo gradual de evolução. Especificamente na questão relacionada a registro, foi sem dúvida um processo evolutivo muito grande. O que a gente precisa é de estudos pós--comercialização. Não tenho dúvida de que vamos caminhar para isso e concordo muito com o que tem sido dito globalmente em defesa de estudos de pós-comercialização. São estudos fundamentais para que os produtos possam ter a sua renovação de registro permitida pelas autoridades regulatórias, no caso brasileiro a Anvisa. Agora, ela é uma agência nova, acabou de entrar na comunidade do ICH e com isso você tem um empoderamento dos técnicos da Anvisa cada vez maior.
O que deve mudar com o ingresso do Brasil no ICH?
No momento em que uma agência regulatória é aceita dentro da comunidade do ICH (International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use) ela assume uma série de compromissos. E entre esses compromissos está o de seguir a médio e longo prazo todos os guidelines do ICH, que não são poucos. O ICH é dividido em grandes grupos, você tem grupos de segurança, de interdisciplinaridade, de eficácia, você tem grandes blocos de discussão e em cada um desses blocos existem dezenas de guias. Um dos guias é o de boas práticas clínicas, chamado de E6 e faz parte do bloco de eficácia. Nós estamos falando de um guia, que é o E6, mas com a entrada da Anvisa na comunidade do ICH, a ideia é que possamos conhecer todos esses guidelines. Então, o fato de a Anvisa ter sido aceita como membro do ICH sem dúvida pressiona muito as indústrias que querem pedir registro no Brasil e que querem manter o seu produto registrado aqui a subir um degrau. Aliás, a subir alguns degraus. Eu não tenho dúvida de que a entrada do Brasil na comunidade do ICH vem ao encontro de uma política internacional que aproxima autoridades regulatórias para que se conversem e pactuem um mínimo de documentos comuns para todas, o que não retira a soberania de cada autoridade regulatória para decidir sobre as necessidades específicas do seu país. Na minha visão, a entrada da Anvisa na comunidade do ICH deve a médio e longo prazo melhorar muito a robustez dos produtos que a gente tem hoje no Brasil.
A pergunta que não quer calar. Você arriscaria dizer que a CONEP vai acabar?
Eu acho que a CONEP vai mudar de nome. Mas volto a dizer que quando você transforma uma questão ética, quer seja garantir a integridade de um participante de pesquisa e, consequentemente, garantir segurança para toda a população que vai usar aquele produto, e você transforma isso em política, tudo pode acontecer. Hoje, se eu tivesse que arriscar, de maneira mais conservadora eu diria que a CONEP vai mudar de nome para Instância Nacional de Revisão Ética, não sei se atrelada ao Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) ou à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE). Obviamente, não adianta só mudar o nome. Há que se avaliar como se faz a escolha e seleção desses membros que hoje vão para a CONEP e quero acreditar que hoje existe uma equipe dentro do Ministério debruçada em analisar todas as regras do atual sistema CEP/CONEP com um corpo técnico realmente empenhado em um processo de revisão.
Está otimista para 2017?
Sinceramente, não.
Perfil
Greyce Lousana é bióloga e médica veterinária, diretora executiva da Invitare Pesquisa Clínica Auditoria e Consultoria, e fundadora da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica (SBPPC).