Carlos Gil Moreira Ferreira é um dos grandes nomes da pesquisa brasileira em câncer e aposta que é possível construir um novo modelo. Em tom de otimismo, ele fala de temas que vão da economia da saúde à regulação e discute o próprio modelo nacional de P&D.
Carlos Gil Moreira Ferreira comanda as áreas de pesquisa clínica e incorporação tecnológicado Instituto Nacional do Câncer (INCA), é idealizador e coordenador do Banco Nacional de Tumores (BNT) e chefe da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer (RNPCC). É com essa bagagem que ele fala da pesquisa e assistência em câncer de pulmão, sua grande área de especialidade, e faz uma análise dos principais temas que estão na agenda da pesquisa clínica brasileira.
O senhor é um nome de relevo nas pesquisas em câncer de pulmão, área que agora amplia possibilidades terapêuticas com a compreensão de novas vias de sinalização.É um momento revolucionário no tratamento sistêmico, em especial do CPNPC?
Sem dúvida é um momento revolucionário que começou a se desenhar nos últimos sete anos e temos assistido à chegada de muitas novidades que realmente mudam a maneira de entender a doença e tratar os pacientes. Os resultados práticos já estão aí. Os pacientes hoje tendem a viver mais e a viver melhor quando tratados para o câncer de pulmão. Acho que esse momento traduz o que está acontecendo na oncologia como um todo, que se depara com uma grande mudança de paradigma. No câncer de pulmão, assistimos hoje a chegada de uma nova era que já se anunciava em outras áreas, como no câncer de mama. Em pulmão, o tratamento sistêmico tardou um pouco e chegou contradizendo uma certa crença mais pessimista, porque alguns ainda acreditavam que o câncer de pulmão era uma doença mais complexa do ponto de vista biológico e que esse cenário não seria possível. No entanto, começamos a identificar subgrupos de pacientes com câncer de pulmão que se beneficiam de terapias específicas e esse é hoje um dos grandes exemplos da tradução do conhecimento gerado pela pesquisa para uma aplicação prática, que tem como grande saldo o ganho de sobrevida dos pacientes.
A pesquisa em câncer vive hoje um momento encorajador e centenas de moléculas estão em estudose. Como identificar aquelas que realmente vão fazer a diferença na prática clínica do oncologista e na vida do paciente?
Essa é uma pergunta muito importante e faz parte de uma preocupação global que se coloca hoje de forma muito clara para quem trabalha com pesquisa e com o desenvolvimento de novas drogas. O que acontece é que existe um excesso de medicamentos em desenvolvimento. Hoje, você encontra determinados alvos que têm pelo menos 20 moléculas quase idênticas em desenvolvimento por diferentes laboratórios da indústria farmacêutica. Então, o que vamos assistir agora ao lado dessa revolução científica é também um panorama diferente no desenvolvimento de drogas e isso já começa a acontecer. Agora temos consórcios de indústrias farmacêuticas ou parcerias para o desenvolvimento de determinadas moléculas. E por quê? Porque eles estão percebendo que o custo e o risco de desenvolver uma molécula talvez seja grandedemais se a concorrência empreende esse mesmo esforço em paralelo. Vamos assistir agora a uma mudança de paradigma também na forma como a indústria desenvolve medicamentos e isso não é simples. Quando você olha essa miríade de moléculas em desenvolvimento, é difícil fazer uma aposta e prever quais delas de fato vão chegar ao uso clínico. O campo de P&D de drogas vai ficar cada vez mais racional do ponto de vista biológico e racional do ponto de vista estratégico. A concorrência nos moldes atuais, com a corrida desenfreada para ver quem consegue o registro primeiro, vai diminuir ao longo do tempo.
As drogas biossimilares estão sendo gestadas em instituições nacionais, com o apoio de centros públicos ligados à pesquisa e assistência. Como o senhor vê esse momento e como o INCA se inscreve nessa nova realidade?
O tema dos biossimilares precisa ser tratado de forma separada, mas claro que de certa forma faz parte desse contexto. É um desafio global, porque o mundo inteiro se debate sobre a qualidade desses medicamentos. Uma coisa é você fazer um genérico de uma molécula sintética. Os biológicos são bem diferentes e despertam preocupações não só com a qualidade final, mas com todo um mecanismo regulatório que precisa ser muito sólido. Acho que o Brasil vem se preparando bem para essa nova realidade, a Anvisa tem estudado o tema e inclusive já estabeleceu guidelines para definir qualidade e segurança de um biossimilar. Avançamos, mas acho que ainda não estamos prontos para essa entrada. A Anvisa deu alguns passos para definir que critérios os estudos vão ter que cumprir para comprovar a intercambialidade das novas moléculas em relação às drogas originais de referência e, evidentemente, o que a comunidade médica e científica exige é que esses agentes cheguem ao mercado com eficácia e segurança. Por outro lado, a aceitação dos médicos em relação aos biossimilares ainda permanece uma incógnita.
E qual o papel do INCA nesse contexto? O INCA na verdade tem o papel de um órgão técnico, como centro coordenador da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer. Evidentemente o INCA participa dos estudos clínicos que vão validar a eficácia, segurança e qualidade dos biossimilares.
Todo esse cenário tem implicações importantes na farmacoeconomia e em ultima instância no acesso.Drogas orais ofertadas pela saúde suplementar não estão incorporadas pelo SUS para o paciente do sistema público. Aumentou o cenário de iniquidades na atenção oncológica?
O que aumenta é o desafio para o governo. À medida que você tem novos medicamentos e uma gama deles fazendo diferença na vida do paciente; medicamentos que muitas vezes têm o seu uso baseado em testes de diagnóstico molecular de qualidade, claro que diante disso tudovocê aumenta o desafio e aumenta o sarrafo. É impossível que o SUS consiga incorporar essa nova gama de medicamentos e os diagnósticos moleculares sem o apoio das PDPs. Ou começamos a produzir isso no Brasil a um custo menor, em parceria com a indústria farmacêutica e a indústria diagnóstica, ou vai ser impossível pagar essa conta. O que é positivo é que essa discussão tem acontecido no âmbito do governo. É fundamental esse entendimento de que temos um desafio pela frente e que ele tem que ser vencido com propostas inovadoras. Não vai ser simplesmente adiando a incorporação ou achando ingenuamente que o governo vai ter capacidade de bancar todos esses medicamentos. Isso é impossível.
E o senhor é otimista com um cenário mais promissor?
Acho que o momento é extremamente positivo, com a possibilidade de aproveitar esse desafio e transformá-lo numa grande oportunidade. Podemos construir esse novo modelo com estudos feitos no Brasil, estudos inclusive de registros de medicamentos. Lá na frente, que é o grande objetivo, vamos poder garantir o acesso da população aos medicamentos de ponta que realmente façam diferença do ponto de vista de eficácia e de custo-efetividade. Acho que vivemos hoje talvez a grande janela de oportunidade para a oncologia nacional. É um momento de se posicionar não só como oncologistas de boa qualidade técnica, marca característica da oncologia nacional, mas também como oncologistas capazes de gerar dados com impacto na nossa realidade de país em desenvolvimento.
Existem críticas de que a regulação não favorece a pesquisa clínica no Brasil, que a burocracia e morosidade dos nossos processos regulatórios têm sido um entrave à pesquisa clínica nacional, principalmente em estudos fase I e II. É uma realidade?
Infelizmente é uma realidade. Talvez o grande avanço seja o reconhecimento da Anvisa de que existem sérios entraves que precisam ser superados. Existe uma discussão muito forte dentro da agência reguladora sobre a importância de favorecer ou pelo menos de diminuir as barreiras para estudos no Brasil, principalmente para estudos de fase I e II. Acho que isso pode ser implementado já a partir deste ano. Então, existe esse reconhecimento de que é preciso fazer mais e melhor para acelerar esses processos, o que é positivo. Por parte da CONEP, que é talvez o grande entrave regulatório, por incrível que pareça temos sentido nos últimos meses uma abertura para o debate. Talvez seja ainda uma abertura tímida, mas existe. Eles perceberam que alguma coisa precisa ser feita ou do contrário vamos matar a atividade de pesquisa clínica no Brasil e a oncologia talvez seja a grande afetada por isso em um curto prazo. Já estamos sentindo hoje que praticamente sumiram as propostas de estudos para centros brasileiros, justamente pelo péssimo momento regulatório que vivemos, sobretudo nos últimos três anos. Ainda vai levar anos até retomar aquele patamar que o Brasil ocupava em termos de capacidade de pesquisa clínica, mas temos condição de retomar isso pela qualidade dos nossos centros. O ambiente regulatório é o grande desafio a ser superado no curto prazo. Estamos em 2014 e a regulação vem de 1996. Então, tem que haver um reconhecimento por parte da CONEP de que os centros brasileiros têm maturidade suficiente para conduzir suas próprias pesquisas e analisar seus estudos de forma independente.
Perfil
Carlos Gil Moreira Ferreira é médico pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Completou sua residência em Clínica Médica pela UERJ e em Oncologia Clínica pelo INCA. Doutor em Oncologia Experimental pela FreeUniversityof Amsterdam, é hoje o coordenador de Pesquisa Clínica e Incorporação Tecnológica do INCA. Também está à frente do Banco Nacional de Tumores (BNT), da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer (RNPCC) e da Rede Nacional de Desenvolvimento e Inovação de Fármacos Anticâncer (REDEFAC). É médico associado do Grupo COI - Clínicas Oncológicas Integradas.