Em artigo, pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (INCA) discutem os desafios que o Brasil precisa enfrentar para avançar na eliminação do câncer do colo do útero, uma das estratégias globais defendidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Para reduzir amplamente ou eliminar o câncer do colo do útero como um problema de saúde pública, é necessário a combinação de uma série de ações simultâneas de prevenção primária, rastreio, diagnóstico e tratamento”, defendem.
Por Flávia Corrêa1, Arn Migowski1, Liz de Almeida2 e Marcelo Soares3,4
Uma das estratégias globais defendidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) diz respeito à eliminação do câncer do colo do útero. Apesar de ser o quarto tipo mais comum entre as mulheres em todo o mundo e o terceiro no Brasil, é evitável se as lesões precursoras forem diagnosticadas e tratadas. A partir desse apelo da OMS e dos desafios que o Brasil precisa enfrentar, é prioritário que a situação dos programas de rastreio e controle desse tipo de câncer no País seja avaliada. Uma das principais discussões atuais refere-se à potencial incorporação de novas tecnologias para o rastreamento.
Para examinar o câncer do colo do útero no cenário brasileiro, três eixos são centrais: a vacinação contra o HPV, o rastreamento e o tratamento. Apesar de o Brasil contar, desde 2014, com a vacinação contra o HPV pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para meninas e meninos (atualmente entre 9 e 14 anos) e ainda para adultos imunossuprimidos, considera-se que essa implantação foi tardia em relação a outros países. Além disso, existem outros gargalos: a cobertura vacinal apresenta dificuldades e, em algumas regiões, como a Norte, é classificada como baixa (principalmente por motivos educacionais, culturais e de acesso). Outro problema é a diferença da adesão entre a primeira e a segunda dose, que também se intensifica, dependendo da região do País.
É preciso reconhecer que a incorporação da vacina contra o HPV ao SUS foi uma grande conquista. E que a vacina utilizada pelo programa brasileiro, a quadrivalente, apresenta excelente eficácia contra os tipos de HPV 16 e 18, responsáveis por 70% dos cânceres do colo do útero. Apesar disso, já há vacina com maior abrangência de tipos de HPV: a nonavalente, que protege contra os tipos de HPV presentes em 90% dos casos de câncer do colo do útero, e está disponível desde março na rede privada do País (além de já ser utilizada por uma série de países). Assim, sua adoção pelo SUS é desejável, mas depende das análises de custo-efetividade e de sua viabilidade no orçamento.
Como o impacto da vacinação é de longo prazo, é essencial combinar essa estratégia com as práticas de rastreamento, que viabiliza a identificação de mulheres que apresentam lesões precursoras ou câncer em estágio inicial, mas ainda não manifestam sintomas, permitindo a detecção precoce.
No Brasil, o método utilizado para rastreamento do câncer do colo do útero é o exame de Papanicolaou. Por obstáculos semelhantes aos relativos à adesão à vacina, que incluem longas distâncias e questões socioeducacionais, os índices de realização do teste são mais baixos na região Norte, justamente onde os casos da doença são mais numerosos.
O fato é que, hoje, já existem métodos de rastreio com tecnologias mais eficazes e que são recomendados pela OMS, mas que ainda não foram incorporados ao SUS. Assim, é primordial que se avalie a incorporação de novas tecnologias, em conjunto com melhorias organizacionais imprescindíveis, como a mudança para o modelo de rastreamento de base populacional, para que o programa brasileiro possa efetivamente avançar.
Os testes de detecção de HPV oncogênico têm alcançado excelentes resultados em países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. Esse tipo de teste demonstra-se mais efetivo em termos de redução da incidência e de mortalidade por câncer do colo do útero, do que o de rastreio com exame citopatológico, pois apresenta maior sensibilidade e, quando negativo, maior garantia da ausência de lesões precursoras ou câncer. Adicionalmente, com esse teste, é possível identificar o tipo específico de HPV e, assim, direcionar a conduta de forma mais adequada.
Em relação ao tratamento para o câncer do colo do útero disponível no Brasil, segue-se, em linhas gerais, o padrão internacional (cirurgia, quimioterapia e radioterapia). O tipo de tratamento depende do estágio de evolução da doença, tamanho do tumor e fatores pessoais, como idade da paciente e desejo de ter filhos. Se confirmada a presença de lesão precursora, o tratamento poderá ser ambulatorial, por meio de eletrocirurgia. O tratamento de lesões precursoras é relativamente simples. Mas é preciso investimento contínuo na ampliação do acesso, capacitação dos profissionais e disponibilização dos materiais e equipamentos necessários.
O maior problema é que as lacunas nos processos de detecção precoce fazem com que muitas mulheres procurem o tratamento apenas quando os sinais estão presentes ou incômodos. Muitas vezes, a paciente já chega para o início do tratamento em estágio avançado da doença, o que dificulta suas chances de cura ou de utilizar uma terapia menos agressiva.
Ao mesmo tempo, há muitos avanços nos tratamentos da doença invasiva com linhas de terapias inovadoras (como novos quimioterápicos ou imunoterapia). Alguns deles já estão em estudo ou disponíveis no Brasil e têm obtido bons resultados. Uma possível inovação tecnológica é a vacinação terapêutica, com estudos em curso em alguns países.
A conclusão é que, para reduzir amplamente ou eliminar o câncer do colo do útero como um problema de saúde pública, só há uma saída: a combinação de uma série de ações simultâneas de prevenção primária, rastreio, diagnóstico e tratamento. O Brasil já realizou a vacinação contra o HPV nas escolas e é algo que funcionava muito bem. A volta dessa estratégia pode ser um caminho interessante. A imunização em dose única também deve ser avaliada.
1 - Divisão de Detecção Precoce e Organização de Rede, Instituto Nacional de Câncer (INCA), Rio de Janeiro, Brasil
2 - Coordenação de Prevenção e Vigilância, Instituto Nacional de Câncer (INCA), Rio de Janeiro, Brasil
3 - Programa de Oncovirologia, Instituto Nacional de Câncer (INCA), Rio de Janeiro, Brasil,
4 - Departamento de Genética, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil
* Os pesquisadores publicaram, em agosto de 2022, artigo na revista Frontiers in Medicine, intitulado Cervical cancer screening, treatment and prophylaxis in Brazil: Current and future perspectives for cervical câncer elimination. Colaborou na redação deste artigo (em fevereiro de 2023), Mônica Torres, que atua na divulgação científica do Instituto.