Onconews - Por caminhos mais sustentáveis para inovação e acesso

vecina bxO médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto (foto), fundador da Anvisa, fala sobre o atual modelo de Pesquisa e desenvolvimento (P&D) e reflete sobre os desafios da regulação e acesso.

Há inúmeros trabalhos discutindo o modelo de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e existem críticas de que o alto custo de diversas intervenções distorce as prioridades de pesquisa, enfatizando ganhos financeiros e não em saúde, assim como existem críticas de que muito dessa inovação se faz com financiamento público. Qual a sua visão?
É um assunto bastante complexo. O investimento que as empresas farmacêuticas têm que fazer para desenvolver um novo produto é muito alto, não há dúvida disso. Por outro lado, boa parte desse investimento é no desenvolvimento de produtos gerados a partir da ciência básica, por conhecimento de experimentações e investigações realizadas na área da ciência básica, que é financiada pelos estados nacionais. Isso não é levado em conta pelas indústrias na hora de dizer que o desenvolvimento de uma nova molécula foi de zil milhões de dólares. Elas esquecem da pesquisa básica, como se todo o desenvolvimento tivesse sido feito pela indústria farmacêutica. Essa questão de quanto é cobrado pelo desenvolvimento, acho que isso nunca será trazido com transparência algum dia. Jamais a indústria vai abrir seus dados. E veja que essa entidade indústria não é única, são indústrias, múltiplas entidades, múltiplas organizações, de países com diferentes culturas. Todas as farmacêuticas buscam remunerar seus investimentos, o que é absolutamente normal. O que não é normal é o lucro abusivo. Nesse sentido, a responsabilidade dos estados nacionais no processo de regulação da atividade econômica das indústrias farmacêuticas nos seus respectivos territórios é algo que tem que se impor. É obvio que estados nacionais como a Suiça, um país muito pequeno e com duas ou três indústrias muito grandes, têm uma dependência dos royalties das patentes e da sua capacidade de geração de receitas. Que interesse pode ter a Suiça em regular a indústria farmacêutica? Existem acordos que valem dentro das próprias fronteiras e não têm validade alguma fora daquele país. Qualquer nação que tome medidas mais drásticas em relação a uma indústria ou a essas indústrias nos respectivos países corre o risco de sofrer sanções. São sanções previstas em acordos internacionais que procuram manter uma certa civilidade no comércio internacional. Não são, portanto, questões simples. No curto e médio prazo, é discutir caso a caso, briga a briga, com muita inteligência emocional por parte dos governos em relação às indústrias. E o que se espera da indústria farmacêutica é que tenha também muita inteligência emocional para fazer essa discussão.

A Anvisa aprovou em agosto o registro do medicamento considerado o mais caro do mundo. A Ciência ficou mesmo cara demais?
O Zolgensma custa mais de US$ 2 milhões nos Estados Unidos, por tratamento. Tem indicação para uma doença que tem uma prevalência muito baixa, mas é um risco imenso para um país pobre ou em desenvolvimento ter que tratar um paciente com essa condição. O remédio cura, mas esse custo de US$2 milhões teria que ser explicado pela indústria. O modelo de criação de novas moléculas mudou muito nos últimos 15 ou 20 anos. Antigamente esse investimento era feito pelas grandes farmacêuticas. Hoje você tem centenas de milhares de pequenas empresas à procura de alvos terapêuticos. A maioria dessas startups morre no nascedouro ou fica no meio do caminho. Das que sobram, poucas vão achar aquela molécula com potencial de ser uma blockbuster. Neste momento, as grandes indústrias farmacêuticas compram essa molécula e prosseguem com seu desenvolvimento. Se é um desenvolvimento bilionário e qual é o tamanho desse lucro, essa é a equação que se coloca e o papel do Estado, cada vez mais, é regular, é brigar pelo acesso.

As PDPs e o complexo industrial da saúde são um caminho mais sustentável?
No modelo das PDPs você chama uma indústria com capacidade de desenvolver a engenharia reversa daquela molécula, mediante garantia de demanda. Essa indústria parceira também faz um investimento de risco, porque a engenharia reversa daquela molécula pode não ser bem-sucedida. Vale lembrar que as moléculas hoje são muito mais complexas do que eram na época da síntese química. É um investimento de fôlego, inclusive assumindo os custos de um ensaio clínico Fase III. Em contrapartida, o governo garante a compra por 5 anos.  Hoje, o balanço das PDPs é extremamente positivo. Nós estamos colocando à disposição da sociedade brasileira moléculas com um preço muito mais baixo do que o praticado pelas multinacionais. Além disso, estamos desenvolvendo a indústria farmacêutica nacional e sua capacidade de fazer cópias. Quem aprende a copiar, aprende a fazer. Através das PDPs temos a capacidade de fazer novas moléculas para um futuro imediato, que já está aí. 

Estudos pragmáticos podem contribuir para racionalizar investimentos em P&D?
Os estudos pragmáticos podem me ajudar a ter mais certeza, mas vão continuar existindo os clássicos ensaios randomizados e outros tantos estudos. Na teoria, muitas dessas propostas têm uma racionalidade, não há como negar, mas temos que tomar cuidado para não cair no extremo oposto, ao estilo do que fez o Didier Raoult com a cloroquina. As críticas à qualidade dos estudos clínicos e à verificação dos resultados indicam que temos que melhorar e que o caminho é longo. É um processo complexo, não existem respostas prontas. As respostas estão sendo construídas. A história da hidroxicloroquina mostrou isso, in vitro deu certo e em humanos falhou. 

O senhor dizia que a regulação evidentemente deve ter um papel balizador ao autorizar a comercialização. A quem compete definir limites para o preço de comercialização?
A Anvisa é um pedaço dessa máquina e tem o objetivo primordial de garantir segurança, eficácia e qualidade. No caso de medicamentos, a Lei outorgou à Anvisa o controle do mercado que, na prática, é feito pelos cinco Ministérios que compõem a CMED, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. É através da CMED que são estabelecidos os critérios para definir o preço de medicamentos na autorização de comercialização. No debate de preço você tem um complexo de forças, com questões que estão na esfera do CADE, questões na esfera da Secretaria de Acompanhamento Econômico, que agora mudou de nome, outras que são da alçada da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Todas essas vozes precisam se alinhar e definir agora o preço de comercialização do Zolgensma no Brasil.

A pandemia da COVID-19 confrontou o mundo inteiro com os desafios da assistência e da sustentabilidade dos sistemas de saúde. Que lições podemos extrair?
Antes da COVID-19 o mundo viveu a AIDS. Em 1996 nós começamos a distribuir o coquetel para o tratamento da AIDS no Brasil. Se pegarmos os jornais da época, ninguém achava que essa política ia dar certo. E em 1996 os medicamentos para a AIDS eram os Zolgensma de hoje. No entanto, contrariando todo o descrédito e vencendo todo o pessimismo, nós conseguimos incorporar o coquetel, até o Truvada, que tem o papel de prevenir a contaminação. E que receita foi essa? Nós usamos a capacidade de produção dos laboratórios públicos, copiamos e produzimos medicamentos; usamos licenciamento compulsório de patentes, usamos nossa capacidade de importação e o governo federal dialogou amplamente com outros países produtores. Dialogamos igualmente com as grandes indústrias farmacêuticas multinacionais. Foi um jogo duro, que envolveu vários jogadores. E deu certo. Naquela mesma época, a África do Sul tomou a decisão oposta à do Brasil e resolveu não distribuir medicamentos para a sua população portadora do vírus da AIDS. Hoje, 15% da população sul-africana está contaminada. No Brasil, a história mostra que o programa foi um sucesso. Eu tenho certeza de que o próximo passo está na esquina. Uma inovação virá de um desses laboratórios que compõem o Complexo Industrial da Saúde. A única diferença é que dessa vez nós é que vamos vender para o mundo e a patente será nossa.

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