Roger Chammas (foto), coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP), fala sobre o atual modelo de Pesquisa e desenvolvimento (P&D) e de caminhos para resgatar o real valor da ciência.
Existem críticas ao atual modelo de P&D e artigo recente1 levanta reflexões importantes sobre o financiamento público. Qual a sua visão?
Sem dúvida é um trabalho muito provocador. É verdade que o Estado está sim pagando duas vezes o custo da inovação, porque a indústria farmacêutica utiliza alguns conceitos que se tornaram conhecidos a partir de descobertas feitas com recursos públicos. Isso é fato e é ao mesmo tempo um chamado para uma ação centrada na valoração da atividade de pesquisa. Que valor é atribuído a uma descoberta? Como a partir desse valor podemos determinar de maneira transparente o custo de uma inovação e, consequentemente, precificar essa inovação? São questões urgentes, mas ainda sem resposta. De um lado, você precisa de grupos que assumam risco. A indústria farmacêutica assume riscos e isso precisa de alguma forma ser recompensado. Quanto vai se recompensar pelo risco assumido e pelo investimento feito? É claro que tudo isso precisa ser discutido mais amplamente e são reflexões necessárias. Como eu disse, esse tipo de reflexão é um chamado para ação. São respostas que precisamos dar como sociedade.
Como aumentar a sinergia entre universidade e indústria?
Quando temos uma pesquisa com grande potencial inovador saindo da universidade, é claro que a universidade deveria ser a primeira a se organizar para buscar parceiros que viabilizem a transferência da inovação para a produção. Ela, universidade, precisa saber valorar aquilo que foi colocado, saber qual share vai ter como instituição, qual vai ser a contrapartida. O recurso da iniciativa privada viria complementando o que é necessário para viabilizar a transferência para a produção. A indústria farmacêutica vai correr esse risco junto com a universidade nesse modelo que vejo idealmente como uma parceria. A instituição pública entra como parceira de uma inovação em saúde, assim também assume riscos. É necessário uma mudança de mindset para que isso ocorra.
Não é essa a proposta das PDPs para o Complexo Industrial da Saúde?
As PDPs quase que invertem essa lógica, ou pelo menos é isso o que temos na prática: uma tecnologia desenvolvida lá fora, quando a patente já expirou. A universidade tem que se colocar desde o processo de descoberta. Se a Universidade se fortalece e se coloca com protagonismo no ciclo da inovação, podemos ter um ambiente que vai realmente produzir pesquisa de alto valor agregado.
No ambiente da oncologia persistem críticas sobre pesquisas com mal comparadores e surrogates que não necessariamente se traduzem em benefício clínico.
Se queremos resgatar o valor da ciência na vida real, então vamos fazer estudos de vida real. Você acelera o processo, consegue flagrar diferenças mais sensíveis nos desfechos para alocar ali os recursos, identificando o caminho mais interessante de se investir do que aquele que já começa a mostrar suas limitações. Hoje se preconiza que esses estudos pragmáticos não sejam um substitutivo, mas sim uma complementação metodológica às evidências de um ensaio randomizado clássico.
E aí voltamos ao debate de inovação, custo e valor.
Pois é. O que precisamos fazer é compreender essa valoração em função do custo do estudo. Daí ao valor de mercado que é efetivamente praticado vai uma distância enorme. Entra uma mágica de cálculo que eu desconheço completamente e inflaciona sobremaneira o custo. Eu assumo que inflaciona. Temos agora custos como esses, de um medicamento que pode alcançar US$ 2,1 milhões por paciente.
Quando uma droga atinge essa cifra é impossível deixar de indagar que ciência é essa que estamos fazendo?
Eu realmente não sei. Queria ver o número, conhecer o cálculo de custo que subsidia a precificação desse medicamento. Eu sou professor universitário e tenho como um mantra manter a transparência de tudo o que eu faço, porque sou um servidor público. Mas e se eu tiver uma atividade privada, sou obrigado a essa prestação de contas? Por quê? São respostas que temos que buscar. No momento, eu não vejo respostas institucionais para questões dessa complexidade. Nossas agências regulatórias estão sendo postas à prova pelo governo de plantão. Nosso papel é continuar educando. Alguns grupos conseguem ter uma compreensão desse cenário, essa visão contemporânea, global; outros não conseguem realmente entender. A minha impressão é que somos ainda esse Brasil heterogêneo, que é uma Bélgica e é também uma Índia, esse Brasil com uma diversidade sociocultural gigantesca. Para refletir sobre a ciência precisamos antes vencer o analfabetismo científico.
E como avançar?
O caminho passa pela reflexão, o direito à troca de ideias, passa pela formação humanista, pela cidadania. Eu acho que temos formado médicos que estão sensíveis a questões como essas, entendo que temos conseguido oferecer uma formação bastante adequada, mas isso não é nacional – e precisa ser. Então, temos que fortalecer a formação científica do médico e precisamos melhorar também a educação científica da população. Sem isso não dá para discutir o modelo de pesquisa e desenvolvimento. Vamos pegar o exemplo da insulina. A insulina foi desenvolvida dentro da Universidade de Toronto e um verdadeiro império foi construído a partir da patente da insulina. O modelo no qual eu acredito e que estamos tentando implantar aqui no complexo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP é um modelo em que a pesquisa corre livre, até vislumbrar a perspectiva de aplicação. A partir daí, essa pesquisa é transferida para um hub de inovação, parceiro da Universidade, e o projeto fica visível para empresas que são atraídas por esse potencial de inovação. Cria-se um sistema no qual você detém royalties que vão ser proporcionais ao valor que foi agregado até aquele momento; daí em diante, a indústria assume. Significa que a Universidade precisa saber atribuir o valor de uma inovação. E a indústria igualmente, evitando praticar preços distorcidos em relação ao que foi realmente investido. O que se faz hoje é um ágio muito grande. Se estamos pensando em justiça social, em uma ciência que sirva à sociedade, precisamos pensar nessa perspectiva. Atribuir valor, discutir quanto de lucro é aceitável, que margem é aceitável e que modelo queremos. Voltamos ao ponto de partida. Essa é uma discussão que precisamos ter como sociedade.
Para o futuro, o que esperar desse modelo do HC FMUSP?
O modelo está em construção, porque ainda não incorporamos todos os aspectos jurídicos do novo marco de inovação. Temos inúmeras atividades de pesquisa no Complexo HC FMUSP e no momento que uma descoberta mostra potencial, essa pesquisa é transferida para uma área que vai negociar o aporte de recursos e viabilizar esse desenvolvimento. Essa concepção só foi possível porque nossos pesquisadores passaram a atuar mais fortemente como prestadores de serviços em ensaios clínicos e a partir dessa experiência esculpimos todo um ecossistema voltado à P&D. O ICESP já nasceu com essa interface e tem a pesquisa clínica inserida no Instituto. O próximo passo dessa evolução já começa a se desenhar, progressivamente, com nossos pesquisadores à frente de ensaios patrocinados. No futuro, o que a gente espera é a pesquisa clínica testando intervenções desenvolvidas aqui, no nosso próprio meio.
Referência: 1 - Annett, Stephanie. (2020). Pharmaceutical drug development: high drug prices and the hidden role of public funding. Biologia Futura. 10.1007/s42977-020-00025-5
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