Ensaios clínicos randomizados mostram que instituir precocemente cuidados paliativos traz benefícios, melhora a qualidade de vida e até prolonga a sobrevida. Mas nem argumentos como esses parecem vencer o estigma e a desinformação. Afinal, como avançar na oferta de cuidados paliativos na assistência oncológica?
Frequentemente subutilizados ou iniciados tardiamente no curso da doença, os cuidados paliativos estão longe de fazer frente à demanda no Brasil. Levantamento da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) mostrou que menos de 10% dos hospitais brasileiros mantêm equipes de cuidados paliativos (CP). O mapeamento identificou apenas 177 serviços no país, onde existem mais de 5 mil hospitais, pelo menos 2,5 mil com mais de 50 leitos. A análise também mostrou que mais de 50% dos serviços de CP iniciaram suas atividades na década de 2010, revelando que a implementação no Brasil não é apenas tímida, mas também recente.
“A ASCO recomenda cuidados de suporte e preconiza cuidados paliativos no sentido amplo, que temos chamado de cuidados paliativos primários”, diz Toshio Chiba, coordenador do Programa de Cuidados Paliativos do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP). “O problema é que a faculdade ensina a atuar na prevenção, no diagnóstico precoce, a instituir tratamento ativo e, finalmente, tem ênfase na reabilitação. Pouco se fala de cuidados paliativos e cuidados no final da vida”, observa o especialista. “Se não é ensinado de forma consistente na faculdade de medicina e não faz parte da residência de clínica médica, então não é incentivado”, analisa.
Integração
Na prática, o desafio de integrar assistência oncológica e cuidados paliativos representa essencialmente o desafio de aliar dois paradigmas, combinando profissionais com diferentes conhecimentos e habilidades. É o que sustentam Kaasa, S et al, em estudo que se propõe a ser um benchmark para a implementação de serviços integrados de CP (Lancet Oncol, 2018).
Os autores defendem que esses dois paradigmas representam culturas diferentes e com origens distintas. A Oncologia tem raízes na medicina convencional (medicina interna), enquanto os hospices e os cuidados paliativos tiveram sua gênese fora dos sistemas de saúde, financiados principalmente por instituições de caridade.
Por essas e outras, existem dúvidas sobre competências e atribuições. O oncologista sabe instituir estratégias de cuidados paliativos? “O ideal é ter profissionais direcionados para cuidados paliativos e cuidados de suporte. São profissionais que conseguem fazer um trabalho melhor do que nós, oncologistas, e têm muito a contribuir”, diz Fernando Maluf, diretor associado da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro do comitê gestor do Hospital Israelita Albert Einstein. “Paliativistas acrescentam conhecimento e experiência a cenários que muitas vezes nos confrontam com nossa falta de preparo não só para manejar cuidados de suporte com o paciente terminal, mas também cuidados paliativos em pacientes que não são terminais, mas que sofrem efeitos do câncer ou do próprio tratamento”, observa Maluf.
A verdade é que à medida que a população envelhece e aumenta o número de pacientes com doenças crônicas graves, as equipes de cuidados paliativos são claramente insuficientes para dar conta da expansão da demanda. Significa que não se trata de decidir entre especialistas e generalistas, mas de assegurar a continuidade de um modelo coordenado de cuidados. No itinerário do paciente de câncer, oncologistas com habilidades básicas de cuidados paliativos podem gerenciar muitas das situações na rotina da assistência, reservando às equipes de especialistas as situações mais complexas ou casos refratários. “Este modelo reforça a prestação de cuidados paliativos primários por todos os envolvidos na assistência a pacientes gravemente doentes”, sustenta Toshio Chiba, do ICESP, que argumenta em defesa de caminhos mais sustentáveis para a expansão de CP. “O ideal é estabelecer modelos de colaboração, o que no sentido amplo significa co-labor, ou seja, um trabalho coletivo que tem como foco o paciente”, propõe.
Quando e como
Para avançar numa relação mais dialógica com as práticas de cuidados paliativos, não basta definir atribuições e competências, mas estabelecer também quando e como instituir CP. Em 2015, Bakitas et al publicaram os achados do ENABLE III, o primeiro estudo a avaliar o momento ideal para a introdução de cuidados paliativos com o padrão de cuidados oncológicos. No grupo que recebeu atendimento precoce houve aumento de sobrevida em um ano em relação aqueles que iniciaram cuidados paliativos 3 meses depois.
Apoiadas em evidências como essas, as principais diretrizes de conduta preconizam CP precocemente no percurso do tratamento oncológico. Mas ainda falta muito para superar os vazios atuais e ampliar a oferta. O Brasil ficou atrás de países como Bósnia e Costa do Marfim no Atlas Global de Cuidados Paliativos (OMS, 2014), com a classificação 3 A. “No grupo 3A o desenvolvimento de cuidados paliativos é irregular, com fontes de financiamento fortemente dependentes de doações, disponibilidade limitada de morfina e um pequeno número de serviços comparado ao tamanho da população”, explica a ANCP. “O sistema de saúde brasileiro está muito atrasado na integração e apoio às equipes de CP”, analisa. Segundo a classificação da OMS, o panorama de cuidados paliativos no Brasil apresenta o mesmo nível de países como Angola, Bangladesh, Congo e Moçambique.
Ao lado do estigma e da desinformação, o financiamento limitado aparece como outra questão antiga. “O problema dos cuidados paliativos é que não tem quem pague a conta. Se eu pedir ressonância, der quimioterapia, operar, aí tudo bem, é rentável para o modelo. E cuidados paliativos? Isso não dá lucro, ninguém quer pagar, não é rentável”, aponta Auro Del Giglio, coordenador do Serviço de Oncologia Clínica do IBCC e do HCor-Onco, em São Paulo.
Na realidade da saúde brasileira, os benefícios e o caráter humanista dos cuidados paliativos não parecem suficientes para romper as lógicas das fontes pagadoras. “Os nossos argumentos são satisfação do paciente, tempo de não internação, de permanência em casa antes da morte, enfim, são métricas que tentam mostrar que vale à pena investir em cuidados paliativos. Mas vale quanto? Em um hospital privado, por que é que eu vou manter uma equipe que vai diminuir o meu volume de internação, que não vai colocar ninguém na UTI, vai evitar exames e intervenções? Existe uma barreira financeira para instituir cuidados paliativos, especialmente em cuidados de fim de vida”, aponta Del Giglio.
A formação profissional também preocupa. Dos 302 cursos de graduação em medicina do país, somente 42 (14%) oferecem uma disciplina de Cuidados Paliativos. Deste universo, somente 18 cursos (6%) mantém CP como disciplina obrigatória.
Caminhos para a humanização da assistência
Uma nova moldura regulatória deve facilitar a implementação de Cuidados Paliativos no Brasil, com diretrizes para a organização de CP no Sistema Único de Saúde (SUS). “A Resolução nº 41 foi pactuada pelas três esferas que constituem o SUS e já está em vigor desde a data de sua publicação, em 23 de novembro de 2018”, explica o médico André Filipe Junqueira dos Santos, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).
A Resolução é um marco importante, ainda à espera de portarias complementares, mas que tem o mérito de estabelecer metas e objetivos bem definidos para a promoção de CP.
Para instituições e serviços interessados, um conjunto de recomendações aponta caminhos e mostra que o ideal é estruturar o modelo em níveis crescentes de complexidade, no esteio do que preconiza a Organização Mundial de Saúde, a Associação Mundial de Cuidados Paliativos (WHPCA) e a própria ANCP (veja quadro). Ao mesmo tempo, as principais recomendações mundiais e consensos nacionais de especialistas também ratificam a proposta da OMS de criar Listas de Medicamentos Essenciais em Cuidados Paliativos, principalmente para facilitar o acesso a analgésicos e opioides.
“O cuidado paliativo oncológico no Brasil infelizmente ainda é muito reduzido. Agora, temos marcadores para a implementação de uma rede estruturada que deve garantir a expansão de CP dentro de uma proposta que valoriza a continuidade do cuidado”, diz Junqueira, da ANCP, que também atua no Instituto de Oncologia de Ribeirão Preto (InORP).
Reforço afirmativo
Em outra frente, especialistas reforçam a necessidade de vencer o estigma, valorizando qualidade de vida e controle de sintomas. “O marketing de maior sucesso se concentra em experiências que são atraentes e não negativas. As pessoas querem informações positivas”, argumenta o médico Toshio Chiba. “É importante reconhecer que muitos pacientes com doenças graves como o câncer estão sendo capazes de tolerar melhor o tratamento curativo, com qualidade de vida”, destaca ele, responsável pela área de CP do ICESP, hoje uma das maiores instituições públicas de assistência oncológica no Brasil.
Perspectivas como essa têm demonstrado que técnicas adequadas de cuidados paliativos agregam valor ao sistema de saúde, aumentam a qualidade da assistência e promovem até redução de custos, eliminando a pressão de internações hospitalares e serviços de emergência desnecessários e dispendiosos. A própria OMS redefiniu o conceito de CP, passando em 2002 a preconizar sua indicação para qualquer paciente com patologia que ameace à vida, na intenção de reverter a dicotomia gerada nos anos 90, quando a indicação era essencialmente atrelada a doenças incuráveis.
Renomear a abordagem é uma saída que há algum tempo desponta como tendência. “A designação de cuidado paliativo infelizmente traz ainda essa visão de cuidado de fim de vida. Ao mudar o nome para medicina integrativa, cuidado complementar ou cuidados integrativos, por exemplo, a aderência é maior, tanto na perspectiva do paciente quanto da própria comunidade médica”, defende Junqueira.
Como estruturar um modelo de assistência em CP, por níveis de complexidade
1º Nível de Cuidados Paliativos O primeiro nível compreende protocolos de boas práticas para avaliação e manejo de sintomas físicos como dor, náuseas, delirium ou dispneia, além de diretrizes e documentos para uso da sedação paliativa e manejo de cuidados durante o processo ativo de morte. Nesse contexto é fundamental treinar profissionais e definir fluxos para realização de Diretivas Antecipadas de Vontade. A disponibilidade de morfina e outros medicamentos essenciais para CP também é um requisito. Qualquer profissional, equipe ou instituição pode oferecer esse primeiro nível de forma integrada à sua prática assistencial. |
2º Nível – Cuidado Paliativo Geral Compreende conhecimentos, habilidades e competências de nível intermediário em cuidados paliativos. Na assistência oncológica, esse nível de cuidados pode ser realizado pelo próprio oncologista ou outro profissional que não tem CP como foco principal, mas utiliza CP de forma integrada à sua prática profissional. A OMS recomenda treinamento de 60 a 80 horas para atuar neste nível de CP, compreendendo avaliação e manejo da dor e sintomas físicos e psíquicos, além do conhecimento de farmacologia e clínica para manejo de opioides; estratégias e habilidades para comunicação de diagnóstico, prognóstico e objetivos de cuidado. A OMS recomenda também que o profissional de Cuidado Paliativo Geral tenha uma referência de Cuidado Paliativo Especializado para ajudar ou encaminhar demandas de maior complexidade, quando necessário. |
3º Nível – Cuidado Paliativo Especializado São equipes que cuidam de casos mais complexos e têm papel não só assistencial, mas também de apoiar e capacitar outros profissionais, atuando ainda no desenvolvimento e implantação de projetos e na multiplicação da cultura de CP no sistema de Saúde. Atuar neste nível requer o mínimo de 3 a 6 meses de treinamento, como recomenda a OMS. O Cuidado Paliativo Especializado compreende tratamento de dor e outros sintomas físicos de difícil controle ou refratários, manejo de situações de sofrimento mais complexas e assistência na intermediação de conflitos, sejam conflitos sobre objetivos de tratamento ou futilidade terapêutica, conflitos entre familiares ou mesmo entre equipes de tratamento. |
(Adaptado da ANCP, 2018)
Referências:
Zimmermann, C., Swami, N., Krzyzanowska, M., Hannon, B., Leighl, N., Oza, A., … Lo, C. (2014). Early palliative care for patients with advanced cancer: a cluster-randomised controlled trial. The Lancet, 383(9930), 1721–1730. doi:10.1016/s0140-6736(13)62416-2
Análise Situacional e Recomendações para Estruturação de Programas de Cuidados Paliativos no Brasil, ANCP, 2018
Kaasa, S., Loge, J. H., Aapro, M., Albreht, T., Anderson, R., Bruera, E., … Lundeby, T. (2018). Integration of oncology and palliative care: a Lancet Oncology Commission. The Lancet Oncology. doi:10.1016/s1470-2045(18)30415-7
Quill, T. E., & Abernethy, A. P. (2013). Generalist plus Specialist Palliative Care — Creating a More Sustainable Model. New England Journal of Medicine, 368(13), 1173–1175. doi:10.1056/nejmp1215620
Bakitas, M. A., Tosteson, T. D., Li, Z., Lyons, K. D., Hull, J. G., Li, Z., … Ahles, T. A. (2015). Early Versus Delayed Initiation of Concurrent Palliative Oncology Care: Patient Outcomes in the ENABLE III Randomized Controlled Trial. Journal of Clinical Oncology, 33(13), 1438–1445. doi:10.1200/jco.2014.58.6362
Resolução nº 41 da Comissão Intergestores Tripartite que dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos no Sistema Único de Saúde (SUS), publicada no Diário Oficial da União nº 225 em 23/11/18, ISSN 1677-7042
Parikh, R. B., Kirch, R. A., Smith, T. J., & Temel, J. S. (2013). Early Specialty Palliative Care — Translating Data in Oncology into Practice. New England Journal of Medicine, 369(24), 2347–2351. doi:10.1056/nejmsb1305469
Higginson, I. J. (2016). Research challenges in palliative and end of life care. BMJ Supportive & Palliative Care, 6(1), 2–4. doi:10.1136/bmjspcare-2015-001091