Mesmo sem ter sido testada de acordo com as metodologias científicas internacionalmente utilizadas para comprovar sua segurança e eficácia, a fosfoetanolamina sintética foi aprovada pelo plenário do Senado, dia 22 de março, através do Projeto de Lei 3/2016, que autoriza pacientes com câncer a usarem a substância. “É uma atitude completamente equivocada, que cria um atalho inaceitável e pode colocar a população em risco”, disse o diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa da Silva Júnior (foto), em entrevista ao Onconews.
“Do mesmo jeito que a Anvisa é absolutamente inapropriada para fazer leis e para fiscalizar o executivo, o congresso não tem o domínio técnico de uma agência regulatória para fazer esse tipo de análise. Essa não pode nunca ser uma decisão política. Podemos ficar vulneráveis a lobbies, em um precedente que abre mil outras possibilidades, nenhuma delas benéfica para a saúde pública”, acrescenta.
A Anvisa está encaminhando um documento para a Presidência da República recomendando o veto. Sociedades médicas, como a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), e organizações de pacientes também estão se manifestando contrárias à sanção presidencial.
Barbosa reforça que nunca chegou nenhum pedido de registro do medicamento à Anvisa. “Apesar de ser utilizada há 20 anos, os desenvolvedores nunca se preocuparam em fazer os testes necessários. Quando eles entregarem o dossiê necessário para avaliação, a substância terá prioridade total de análise. Mas até hoje nunca recebemos nada”.
Sem segurança, nem eficácia
O pesquisador Marcos Vinícius de Almeida, um dos detentores da patente da fosfoetanolamina sintética, já declarou à imprensa que não descarta a possibilidade de o grupo detentor lançá-la como um suplemento, caso são seja liberada como medicamento.
A monoetalonamina, presente nas cápsulas analisadas, ainda não teve a análise da toxicidade concluída. O presidente da Anvisa alerta sobre os perigos de substituir o tratamento convencional pelo uso da substância. “Alguns dos defensores do uso imediato da fosfoetanolamina afirmam que ela funciona melhor se o paciente não estiver fazendo uso de quimioterapia. Isso é um risco muito grave porque pode aumentar a mortalidade por câncer no Brasil”, ressalta.
A falta de registro, além de colocar pacientes em risco, também dificulta o controle e a garantia de direitos do paciente, mais bem resguardados em medicamentos registrados. “Se alguém tiver problemas com o uso da fosfoetanolamina, vai recorrer a quem? Quem é responsável? Como não está sob regulação sanitária, quem vai atestar que o que está contido na cápsula corresponde efetivamente ao que está dito?”, questiona o presidente da Anvisa.
Análises preliminares
Os resultados dos primeiros testes com a substância produzida no Instituto de Química da USP de São Carlos, encomendados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), mostraram que as cápsulas não são puras, e tampouco apresentam atividade contra células cancerígenas em testes ‘in vitro’. “Os desenvolvedores do Instituto de Química de São Carlos dizem que é fosfoetanolamina pura, e nós também acreditávamos que fosse. Quando iniciamos as análises, ficamos muito surpresos ao encontrar outros componentes nas cápsulas”, afirma o professor Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos responsáveis pelo estudo que avaliou a atividade citotóxica e antiproliferativa dos compostos sobre células humanas de carcinoma de pâncreas e melanoma ‘in vitro’.
A análise demonstrou que as cápsulas verificadas não são puras, e sim contém cinco componentes, em diferentes concentrações: 32,2% de fosfoetanolamina, 18,2% de monoetanolamina, 3,9% de fosfobisetanolamina, 38,5% de fosfatos e 7,2% de água.
Além de conter outras substâncias, o relatório mostrou que as quantidades também são diferentes entre as cápsulas. “Não dá para fazer mil tipos de testes antes de ter certeza do que tem nas cápsulas de fosfoetanolamina. Apesar de estar escrito fosfoetanolamina 500mg, algumas cápsulas possuíam 400 mg de fosfo, outra 350 mg, outra 230 mg. Não tem um padrão. Eles nunca fizeram uma avaliação do conteúdo das cápsulas, o que é essencial”, diz.
Os resultados descritos no relatório parcial demonstram que somente a monoetalonamina apresentou alguma atividade, sendo “várias ordens de magnitude menos potente que os antitumorais cisplatina e gencitabina, utilizados como controle positivo. Já a fosfoetanolamina e a fosfobisetanolamina não apresentaram nenhuma atividade citotóxica nem antiproliferativa em nenhuma das três metodologias utilizadas”, concluiu.
Os cinco primeiros relatórios das pesquisas financiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para avaliar a segurança e eficácia da fosfoetanolamina estão disponíveis aqui.
Próxima etapa
Independentemente da decisão presidencial, e apesar dos resultados iniciais não terem sido promissores, os testes com a substância continuam. “Geralmente, se um composto não é ativo in vitro, ele não segue para testes in vivo. Nesse caso serão realizados mais testes porque o clamor popular é muito grande. Não fosse a comoção popular, essa molécula não avançaria para testes in vivo”, afirma Dias.
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