Pesquisadores desenvolveram o primeiro exame de sangue que pode detectar com precisão mais de 50 tipos de câncer e identificar em qual tecido o câncer se originou, muitas vezes antes da presença de sinais ou sintomas clínicos da doença. Os resultados estão em artigo de M.C. Liu et al, no Annals of Oncology. “Se estudos de validação confirmarem esses dados preliminares, teremos provavelmente a ferramenta mais poderosa de prevenção desenvolvida até hoje”, avalia Bernardo Garicochea (foto), oncologista e hematologista do Centro Paulista de Oncologia/Grupo Oncoclínicas e diretor médico do Laboratório OC Precision.
Neste estudo prospectivo de caso-controle (NCT02889978 e NCT03085888), o objetivo foi avaliar padrões de metilação do DNA livre de células circulantes (cfDNA) para detectar e localizar vários tipos de câncer, com alta especificidade.
Um total de 6689 participantes [2482 câncer (> 50 tipos de câncer), 4207 não-câncer] foram divididos para estabelecer os grupos de intervenção e validação. Os resultados mostram que o desempenho foi consistente nos conjuntos de intervenção e validação. Na validação, a especificidade foi de 99,3% [com 95% de intervalo de confiança (IC): 98,3% a 99,8%; 0,7% de taxa de falsos positivos.
A sensibilidade foi de 67,3% (IC: 60,7% a 73,3%) em um conjunto pré-especificado de 12 tipos de câncer (ânus, bexiga, cólon / reto, esôfago, cabeça e pescoço, fígado / ducto biliar, pulmão, linfoma, ovário, pâncreas, neoplasia de células plasmáticas, estômago), que representam hoje 63% das mortes por câncer nos EUA anualmente, e foi de 43,9% (IC: 39,4% a 48,5%) em todos os tipos de câncer.
O poder do teste em identificar a presença de câncer aumentou conforme a evolução da doença. A sensibilidade para todos os tipos de câncer foi de 39% no estágio I, 69% no estágio II, de 83% no estágio III e de 92% no estágio IV.
“O sequenciamento do cfDNA, utilizando padrões informativos de metilação, detectou mais de 50 tipos de câncer. Considerando o valor potencial da detecção precoce no câncer, uma avaliação mais aprofundada deste teste se justifica em estudos prospectivos em nível populacional”, concluem os autores.
O editor-chefe da Annals of Oncology, Fabrice André, também diretor de pesquisa do Instituto Gustave Roussy, em Villejuif, França, destacou a importância do trabalho.
“Este é um estudo histórico e um primeiro passo para desenvolver ferramentas de triagem fáceis de executar. A detecção precoce de mais de 50% dos cânceres poderia salvar milhões de vidas todos os anos em todo o mundo e reduzir drasticamente a morbidade induzida por tratamentos agressivos”, disse.
Resultados promissores
Por Bernardo Garicochea, diretor do Centro de Medicina Genômica e da Unidade de Oncogenética do Centro Paulista de Oncologia/Grupo Oncoclínicas e diretor científico do Laboratório Idengene.
O uso de DNA tumoral circulante para detecção rápida de câncer é um desdobramento natural do avanço algumas áreas na tecnologia de estudo do DNA, tais como: a) a identificação e enriquecimento das raras moléculas de DNA livre do tumor no plasma; b) da capacidade de sequenciamento em profundidade cada vez mais precisa, mesmo em alvos muito raros; e c) especialmente com o desenvolvimento de ferramentas de informática muito complexas, capazes de separar rápida e eficientemente alterações no DNA aleatórias de alterações com padrões que possam identificar patogenicidade ou até topografia da lesão original.
O estudo de mutações que se repetem com frequência elevada em certos tipos de tumor é um dos alvos mais estudados. Mais recentemente, a descoberta de que o padrão de metilação do DNA, simplesmente de promotores ou até de alguns genes é bastante específico de neoplasias malignas, especialmente retendo as mesmas características em tumores de origem similar, parece ser um investimento mais interessante, já que essas alterações são mais universais em câncer e apresentam, à primeira vista, padrão de especificidade maior.
Diversos grupos no mundo têm trabalhado no aperfeiçoamento de ferramentas de informática capazes de transpor um achado de metilação aberrante em DNA circulante em uma forte evidência de câncer. Claro que esses métodos sofrem de muitas dificuldades, como a interpretação de dados quando a concentração do alvo é muito baixa (e esse seria o cenário mais interessante para prevenção), a possibilidade de erros técnicos ou a detecção de clones que não têm implicação clínica relevante. No entanto, os autores conseguiram detectar mais de 60% dos tumores em estadio II, fase em que a curabilidade é muito alta.
Se estudos de validação confirmarem pelos menos esses dados preliminares, teremos provavelmente a ferramenta mais poderosa de prevenção desenvolvida até hoje. Já que pode ser feita de forma repetida e simples, independe de métodos de imagem e avaliações subjetivas ou de procedimentos que exigem preparos e anestesias. Essas ferramentas seguiriam importantes, mas seriam parte de uma fase complementar ao exame de sangue. Isso reduziria os custos de rastreamento especialmente em casos de alto risco e teria, sem dúvida, impacto na mortalidade por câncer.
Referências: M.C. Liu et al. Annals of Oncology - “Sensitive and specific multi-cancer detection and localization using methylation signatures in cell-free DNA”, by M.C. Liu et al. Annals of Oncology