Especialistas do mundo inteiro participaram do 1º CannX Brasil – Congresso Internacional de Medicina Canabinoide, que de 12 a 14 de novembro reuniu no Centro de Convenções Rebouças, São Paulo, pesquisadores e instituições interessados em diferentes aplicações da maconha medicinal. “Na oncologia, observamos que as prescrições no Brasil infelizmente estão estagnadas e que falta conhecimento”, resume Leandro Stelitano, presidente da CANNAB, Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil.
A Associação se apresenta como uma organização sem fins lucrativos para apoiar e dar suporte a pacientes que fazem uso do canabidiol por recomendação médica e reconhece que é preciso vencer o estigma e a desinformação. “As evidências estão aí, mas não temos avançado na prescrição”, aponta Leandro.
Dados de um survey coordenado pelo Dana Farber Cancer Institute mostram que 80% dos oncologistas ouvidos discutiram o uso medicinal da maconha com seus pacientes e quase metade (46%) recomendou o uso no ano passado. Os resultados foram publicados no Journal of Clinical Oncology1 e segundo os autores refletem o primeiro estudo sobre práticas e crenças dos oncologistas em relação à maconha medicinal.
A pesquisa buscou avaliar se o especialista conversa com seu paciente sobre o uso da maconha medicinal, quais as recomendações mais frequentes e o grau de conhecimento do oncologista sobre o tema. O estudo também procurou explorar perspectivas relacionadas à eficácia da maconha medicinal em sintomas relacionados ao câncer, como dor, náuseas e vômitos, depressão, ansiedade, falta de apetite e insônia, bem como seus riscos em comparação com outros tratamentos disponíveis.
O survey foi enviado a 400 oncologistas selecionados aleatoriamente e obteve 237 respondentes. Os resultados mostram que embora 80% dos respondentes conversem com seus pacientes sobre o uso da maconha medicinal, menos de 30% dos especialistas se sentem suficientemente informados sobre o assunto para fazer recomendações, mas quase metade (46%) recomendou o consumo aos pacientes no último ano. “Neste estudo, identificamos uma discrepância preocupante: quase metade recomenda o uso clinicamente, mas menos de 30% dos oncologistas realmente se consideram bem informados para fazer essa recomendação", disse Ilana Braun, chefe da Divisão de Oncologia Psicossocial do Dana-Farber Cancer Institute e primeira autora do estudo.
Em relação à eficácia, para 67% dos respondentes a maconha é entendida como um complemento às estratégias padrão de tratamento da dor, enquanto 65% consideram que a cannabis medicinal é tão ou mais eficaz que o atual padrão de tratamento para anorexia e caquexia. "Garantir que os médicos tenham conhecimento para embasar suas recomendações é essencial para fornecer cuidados de alta qualidade”, disse Eric G. Campbell, professor da Escola de Medicina do Colorado e coautor do trabalho. “Nosso estudo sugere que há claramente espaço para melhorar quando se trata de maconha medicinal”, concluem os autores.
Evidências e perspectivas
Estudo de revisão3 publicado em 2017 pela National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine dos Estados Unidos revelou “evidências conclusivas ou substanciais” de que a maconha ou compostos relacionados podem efetivamente tratar a dor crônica e a náusea induzida por quimioterapia em pacientes de câncer. O relatório de 395 páginas reflete o trabalho de um comitê de especialistas que considerou mais de 10 mil resumos de pesquisas científicas sobre o uso da cannabis. O time de especialistas concluiu que são necessárias mais pesquisas sobre riscos e benefícios da maconha medicinal, mas observa que obstáculos importantes ainda atrapalham as pesquisas nesse campo.
“É uma prescrição complicada em vários aspectos”, diz Gilberto Castro, oncologista do ICESP. “Primeiro, acho que a gente precisa ter acesso a uma informação de melhor qualidade, uma evidência melhor. Em segundo lugar, a questão da barreira legal existe. Não está claro como você vai prescrever, qual formulário tem que usar, onde o paciente vai comprar. E isso sem falar da questão cultural. São múltiplas barreiras, a começar pela barreira da informação”, analisa Gilberto.
A oncologista Clarissa Mathias, do Núcleo de Oncologia da Bahia (NOB), é uma das integrantes da CANNAB. “Apenas ajudei alguns pacientes com ações para a liberação legal da importação do óleo utilizado para náuseas e redução de apetite”, diz ela.
Apesar das limitações e da presença ainda tímida da Cannabis medicinal na oncologia, as perspectivas são otimistas. Em janeiro de 2018, a Science destacou o potencial da pesquisa com cannnabis medicinal e sua capacidade de fomentar oportunidades de carreira, além de estimular um ambiente favorável a novas descobertas científicas.
Diferentes canabinoides já foram examinados em vários modelos de câncer e estudos recentes se concentraram no papel dos agonistas dos receptores canabinoides (CB1 e CB2), especialmente no tratamento do câncer de mama negativo ao receptor de estrogênio. Outra linha de pesquisa que desperta entusiasmo mostra que a maconha medicinal pode reduzir o crescimento tumoral. É o que foi demonstrado, por exemplo, em linhagens de câncer de pulmão não pequenas células com expressão EGFR, a partir de estudo de pesquisadores da Harvard Medical School, publicado em 2007 na Cancer Research4.
No Brasil, o Mevatyl® foi o primeiro medicamento derivado da maconha registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O agente, que em alguns países tem o nome comercial da Sativex®, é um composto de 27 mg/ml de Delta-9-tetrahidrocanabinol e 25 mg/ml de canabidiol (CBD), desenvolvido pela inglesa GW Pharma e distribuído aqui pela Beafour Ipsen Farmacêutica. Com apresentação em spray para pulverização bucal, o medicamento recebeu indicação para esclerose múltipla, em pacientes adultos com espasticidade moderada a grave, e não está indicado para uso na oncologia.
O registro veio um mês depois das mudanças incorporadas pela Anvisa com a atualização do Anexo I da Portaria SVS/MS nº 344/98, norma que trata das substâncias sob controle especial no Brasil. O novo texto passou a incluir medicamentos derivados da Cannabis sativa, em concentração de no máximo 30 mg de tetrahidrocannabinol (THC) por mililitro e 30 mg de canabidiol por mililitro.
Apesar dos avanços na moldura regulatória, sobram críticas no ambiente de pesquisa, com variações importantes no entendimento da maconha medicinal. Há estudos com um ou dois ingredientes ativos, enquanto outros consideram a própria planta, que contém centenas de ingredientes ativos. Além das formulações, variam também os modos de administração, incluindo uso oral, por vaporização e até uso tópico.
Essas e outras questões fizeram parte do programa científico do 1º CannX Brasil – Congresso Internacional de Medicina Canabinoide. No primeiro dia do congresso, o oncologista Antonio Carlos Buzaid foi moderador da mesa que discutiu “O Potencial medicinal da Cannabis e dos canabinoides em oncologia”. Outro painel destacou o uso de canabinoides no tratamento do câncer de mama, em apresentação do mastologista Leandro Cruz Ramires da Silva, do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte.
Referências:
1 - Braun IM, Wright A, Peteet J, et al. Medical Oncologists’ Beliefs, Practices, and Knowledge Regarding Marijuana Used Therapeutically: A Nationally Representative Survey Study. J Clin Oncol 2018;36:1957-1962
2 - Caulley, L., Caplan, B., & Ross, E. (2018). Medical Marijuana for Chronic Pain. New England Journal of Medicine, 379(16), 1575–1577. doi:10.1056/nejmclde1808149
3 - National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine. 2017. The health effects of cannabis and cannabinoids: The current state of evidence and recommendations for research. Washington, DC: The National Academies Press. doi: 10.17226/24625
4 - Anju Preet, Ramesh Ganju and Jerome Groopman. Δ-9 Tetrahydrocannabinol inhibits growth and metastasis of lung cancer. Cancer Research: Experimental and Molecular Therapeutics, May 2007, Volume 67, Issue 9 Supplement