O congresso da SBOC trouxe este ano um tema recorrente: a necessidade de classificar e controlar a dor do paciente. Parece óbvio, mas o que a realidade nos mostra é que a maior parte dos pacientes de câncer no Brasil ainda convive de perto com a dor e suas consequências, em múltiplas dimensões. O oncologista Gustavo dos Santos Fernandes (foto), que acaba de assumir a presidência da SBOC, participou do simpósio de dor realizado em Foz do Iguaçu e falou ao Onconews sobre o desafio de vencer a opiofobia.
Pesquisa realizada pelo Instituto Oncoguia sobre o impacto da dor na vida do paciente com câncer mostra que 84% dos participantes têm dor de moderada a intensa em alguma etapa da doença, o que dimensiona a extensão e amplitude do que já se convencionou chamar de opiofobia.
Realizada durante 80 dias, a pesquisa contou com 344 respostas de pacientes usuários do portal e das mídias sociais do Oncoguia, sendo 90% mulheres, a maioria entre 40 e 59 anos. Aproximadamente 50% dos respondentes eram pacientes de câncer de mama, sendo que 40% fazem seu tratamento no Sistema público e 35% contam com planos de saúde suplementar.
“Apesar de diversos estudos mostrarem que a dor é um sintoma extremamente comum no câncer, mas que pode ser controlado, muitos pacientes acreditamque ela faz parte da doença e sofrem em silêncio, desnecessariamente”, lamenta Luciana Holtz, presidente do Oncoguia.
Para 54% dos respondentes, a dor faz parte da doença, e por isso nem conversam sobre o tema com seu médico. Além disso, 41,5% dos pacientes relataram sentir dor
há mais de um ano, com consequências em todos os aspectos da vida. Grande parte dos pacientes deixa de participar de ocasiões sociais por causa do sintoma, passa a recusar convites de amigos, não praticam esportes ou outras atividades de lazer e têm afetado até o desempenho no trabalho, muitas vezes levando à perda do emprego.
A dor também foi apontada pela maioria (53,8%)como responsável pelo surgimento de outros problemas de saúde, como ansiedade (55,2%), depressão (43,7%) e obesidade (32,5%), o que evidencia a importância de uma atitude proativa do médico em abordar o assunto com seus pacientes.
ON: Dr. Gustavo, como avançar para um controle mais efetivo da dor, sem a resistência aos opioides na oncologia?
Gustavo dos Santos Fernandes: Existe um problema na comunidade médica e existe um problema entre os pacientes. A resistência é de parte a parte. Acho que existe algum grau de impaciência em explicar de forma clara os benefícios que aquilo pode ter. O paciente tem preocupações frequentes com o risco de vício e até com o risco de óbito relacionado ao uso de opioides. Falta mais tempo no consultório para explicar esse tipo de coisa.
ON: Se falta tempo no consultório, falta também tempo na formação das escolas médicas para a atenção e controle da dor no câncer?
Veja, estou assumindo que os médicos sabem lidar com opioides e que eles entendem disso. O que eu acho é que realmente a consulta médica vem sendo diminuída, ocupada por métodos de imagem, por exames modernos e por novas tecnologias. Com tudo isso, os médicos têm dado pouca atenção ao que é necessário e deveria ser visto como o principal: a escuta, o toque, o controle de sintomas, as condutas clínicas mais gerais. Nisso está envolvida também a questão da dor. Então, falta dirigir um tempo da consulta para o controle de sintomas do paciente e não só para o tratamento da doença. Você precisa dar qualidade à vida que se tem e não apenas dar tempo de vida.
ON: Como podemos dar um salto de qualidade em questões como essas?
São questões complexas e certamente esse assunto é tratado abaixo do que deveria. Isso acontece no país inteiro, por razões culturais, religiosas, por uma série de razões. O oncologista quer tocar no assunto e o paciente não deixa, a família pede. Além disso, toda a atenção vai para a sobrevida e isso cria uma dificuldade real. Existe toda uma ênfase em novas drogas que prolongam a sobrevida, em estratégias que prolongam a sobrevida e muitas vezes se deixa de lado a qualidade de vida como um valor importante. Mas para inserir questões como essas, você esbarra no paradigma cultural. Se você fala para o paciente que o prognóstico é ruim e que existem dificuldades, muitas vezes ele vai embora, ou simplesmente ignora o que você falou e diz: ”Deus vai me curar, doutor”. Lidar com o paciente oncológico no cotidiano, com um estilo cultural como o nosso, é muito difícil. A sociedade encara a finitude da vida como uma derrota e isso é um desafio para pacientes, médicos oncologistas, enfim, um desafio para todos nós. As pessoas têm dificuldade de lidar com a morte, com a terminalidade, e esse continua como um assunto muito difícil.