Não há consenso sobre a definição de recorrência peritoneal (RP) e recorrência local (RL) na recidiva intra-abdominal do câncer colorretal. Artigo de Dumont, F. et al. na Surgical Oncology discute a caracterização de RP e RL, prognóstico e implicações clínicas. O cirurgião oncológico Daniel Cesar (foto), do Instituto Nacional de Câncer (INCA) e membro da comissão de câncer colorretal da SBCO, comenta os resultados.
Dados da literatura mostram que a cirurgia citorredutora combinada com quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC) melhora a sobrevida comparada à quimioterapia sistêmica e tem sido tratamento de escolha no câncer colorretal (CRC, da sigla em inglês), em tumores com extensão locorregional. No entanto, a recidiva intra-abdominal é frequente, variando de 4 a 11%.
Neste estudo, o objetivo foi definir mais claramente RP e RL para contribuir com sua caracterização e protocolo de tratamento.
Entre janeiro de 2008 e dezembro de 2015, 108 pacientes foram submetidos à cirurgia citorredutora e HIPEC para recorrência intra-abdominal do CRC, em duas instituições da França. Dos 108 pacientes inscritos, 56 (51,9%) tinham RP isolada e 52 (48,1%) tinham RL com RP (RPL n = 19; 17,6%) ou sem RP (n = 33; 30,5%). Não houve diferença estatística entre os grupos avaliados, considerando as características do tumor primário e extensão da doença.
Resultados
Após acompanhamento pelo período médio de 32 meses, a sobrevida global (SG) e a sobrevida livre de doença (SLD) não foram estatisticamente diferentes entre os dois grupos. A SG mediana dos pacientes nos grupos RPL e RP foi de 46 e 42 meses, respectivamente (p = 0,226). Aos 3 anos, a SG foi de 68,9% no grupo de RP e de 58,4% no grupo RPL; a SLD foi de 19,9% e 21,8% (p = 0,782), respectivamente.
Fatores de risco também foram semelhantes. As recorrências intra-abdominais ocorreram principalmente após a ressecção de tumor primário (T4> 35%, Nþ ~ 70%) e em tumores com células em anel de sinete ou subtipo histológico mucinoso, características que foram consistentemente confirmadas como preditores de carcinomatose peritoneal.
Apesar da aparente semelhança, os autores também apontam distinções importantes. “É interessante notar que alguns pacientes tiveram RP isolada (51,9%), outros tiveram RL isolada (30,5%), mas poucos pacientes tiveram ambas (17,6%). Esses achados sugerem que RL e RP não têm exatamente a mesma história natural”, descrevem, confirmando observação anterior (Sjövall, 2007).
“Nossos resultados confirmam que o peritônio é uma barreira oncológica para a progressão local do tumor. A presença de LN+ é frequente (25%) na RPL e rara na RP (7%). A ressecção cirúrgica ótima com linfadenectomia sistemática de órgãos invadidos pela RL parece obrigatória. Após cirurgia citorredutora e HIPEC, a presença de RL aumenta a mortalidade pós-operatória, mas não tem impacto na sobrevida a longo prazo”, concluem os autores.
Comentários
Daniel Cesar (foto), cirurgião oncológico do Instituto Nacional de Câncer (INCA) e membro da comissão de câncer colorretal da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), comenta os resultados:
“Estima-se que mais de 1,8 milhão de novos casos de câncer colorretal e 881.000 mortes ocorram em todo o mundo em 2018. No geral, o câncer colorretal ocupa o terceiro lugar em termos de incidência, mas o segundo em termos de mortalidade mundial. Análises populacionais apontam que a incidência tende a crescer em países em desenvolvimento. No Brasil, para cada ano do triênio de 2020-2022 o Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima 20.520 novos casos de câncer de colorretal em homens e 20.470 em mulheres. Esses valores correspondem a um risco estimado de 19,63 casos novos a cada 100 mil homens e 19,03 para cada 100 mil mulheres. Sabe-se que a sobrevida no câncer colorretal está intimamente ligada ao estadiamento no momento do diagnóstico e que a recidiva e a doença metastática são o principal fator relacionado à mortalidade. A recorrência intra-abdominal é relativamente frequente no câncer colorretal, com incidência variando de 4 a 11%. Por vezes, as recidivas locais ou peritoneais apresentam pior prognóstico quando comparada às recidivas à distância, sendo seu tratamento árduo e mórbido.
Ainda não há consenso na literatura sobre a definição precisa de recidiva local (RL) e recidiva peritoneal (RP) e existem dados contraditórios sobre a fisiopatologia e a melhor abordagem terapêutica para cada uma dessas formas de recidiva. A literatura aponta que a cirurgia citorredutora (CCR) associada à hipertermoquimioterapia (HTQT) melhora a sobrevida nesse grupo de pacientes. O artigo publicado em janeiro de 2020 por Dumont et al. na revista Surgical Oncology aborda exatamente esse tema. Em seu trabalho, os autores esclarecerem as diferenças nos padrões de recidiva e analisam o resultado dos tratamentos empregados em cada uma delas.
Para este fim, os autores estudaram retrospectivamente 108 pacientes operados em duas instituições francesas entre janeiro de 2008 e dezembro de 2015. Destes, 56 (51,9%) apresentavam RP isolada e 52 (48,1%) aprestavam recidiva locoperitoneal (RLP), dos quais 19 (17,6%) com RL associada a RP. Os grupos não apresentaram diferenças estatisticamente significativamente em relação ao tumor primário nem extensão da recidiva. Todos os pacientes foram submetidos a CCR com HTQT. Os grupos foram acompanhados por uma média de 32 (1 – 108) meses. A sobrevida global (SG) e a sobrevida livre de doença (SLD) foram semelhantes entre os dois grupos. Mais precisamente, a SG média dos pacientes nos grupos RLP e RP foi de 46 e 42 meses, respectivamente (p = 0,226). A SG em 3 anos foi de 68,9% no grupo de RP e 58,4% no grupo RL, a SLD em 3 anos foi de 19,9% e 21,8%, respectivamente (p = 0,782). O que chamou a atenção nos resultados foi a maior taxa de envolvimento linfonodal no grupo RLP. Dos 52 pacientes com RL associada ou não a RP, 13 (25%) apresentaram linfonodos positivos contra apenas 4 (7%) no grupo com apenas RP (p=0.016). O grupo RLP também apresentou maiores taxas de ressecções multiorgânicas a fim de se obter citorredução ótima, 2 vs. 1 (p<0.016); assim como maiores taxas de complicações pós-operatórias graves e foi o único grupo com mortalidade, 5 vs 0 (p=0.023)
O artigo essencialmente confirma os achados já descritos previamente, os quais demonstram que a RL tem um comportamento invasivo distinto da RP. A RL é mais frequentemente infiltrativa do que expansiva e a progressão da infiltração está associada a uma maior taxa de invasão de órgãos e tecidos vizinhos, tornando necessárias ressecções multiorgânicas durante as CCRs. Por outro lado, nas metástases peritoneais (carcinomatose), onde o peritônio está intacto, o risco de envolvimento de órgãos adjacentes é relativamente mais baixo. Esse comportamento invasor agressivo também parece estar relacionado ao maior acometimento linfonodal na RL quando comparada a doença exclusivamente peritoneal (25% vs 7%).
Acredita-se que as recidivas locais, por serem frequentemente infiltrativas e acometerem o espaço intersticial rico em redes linfáticas, têm risco maior de disseminação linfonodal quando comparadas a doença exclusivamente peritoneal. Esses achados levantam a questão sobre a necessidade de linfadenectomia de rotina durante as ressecções nas recidivas locais. Porém, essa recomendação não pode ser feita de forma rotineira por não haver ainda estudos prospectivos randomizados comparando a sobrevida nesses subgrupos de pacientes. Da mesma forma, a linfadenectomia não está padronizada na CCR com HTQT na carcinomatose peritoneal dos tumores colorretais.
Além disso, a RL geralmente ocorre no leito cirúrgico previamente dissecado e, por tanto, desprovido de peritônio. Supõem-se que o peritônio aja como uma barreira anatômica limitando o implante de células tumorais e dificultando a disseminação e invasão de estruturas adjacentes. Em teoria, o leito pós-operatório desprovido de peritônio é mais susceptível a implantação e disseminação neoplásica quando comparado aos compartimentos abdominais recobertos pela camada de mesotélio peritoneal. No estudo, os pacientes com recidiva pélvica após ressecção anterior do reto apresentaram maiores taxas de cirurgia multiorgânica durante CCR, nesse grupo de pacientes estavam os 5 para óbito. Todos foram os submetidos ressecções pélvicas complexas (0 vs. 9,6%; p=0.023). Em comparação com a RP, as ressecções nas RLP estiveram associadas à maior mortalidade. Nesse padrão de recidiva a pelve está nua, desprovida de peritônio, e existe uma proximidade com estruturas anatômicas importantes pelas características inerentes da pelve. O contrário não ocorre com a RP por disseminação celômica, onde o peritônio está intacto. É interessante notar que nesta publicação alguns pacientes tiveram RP isolada (51,9%), outros tiveram RL isolada (30,5%), mas poucos pacientes tiveram ambas (17,6%). Possivelmente o peritônio atue realmente como barreira neoplásica.
Os autores concluem que RL e PR têm características distintas e que por essa razão o tratamento da RL e RP deve ser individualizado. Sendo, portanto, interrogada necessidade de HTQT no caso de RL isolada. Embora a recidiva à distância permaneça sendo a causa mais comum de mortalidade relacionada ao câncer colorretal, a recorrência locorregional é extremamente mórbida e traz grave impacto à sobrevida. Nas últimas décadas, a RL tem sido o foco de intensas pesquisas na área. Porém, até o momento, o tratamento das recidivas locais e peritoneais no câncer colorretal merece amplo debate e ensaios clínicos randomizados abordando CCR e quimioterapia intra-abdominal são necessários para responder essas dúvidas”.
Referência: Dumont, F., Joseph, S., Lorimier, G., De Franco, V., Wernert, R., Verriele, V., … Thibaudeau, E. (2020). Intra-abdominal recurrence from colorectal carcinoma: Differences and similarities between local and peritoneal recurrence. Surgical Oncology, 32, 23–29. doi:10.1016/j.suronc.2019.10.018