Estudo internacional analisou o uso da radioterapia (RT) em oito tipos de câncer (esôfago, estômago, fígado, cólon, reto, pâncreas, pulmão e ovário), em pacientes diagnosticados na última década, a partir de 16 jurisdições internacionais com sistemas de saúde semelhantes, em três continentes. Os resultados mostram grandes variações, tanto na frequência da utilização de RT pós-diagnóstico, quanto no tempo até o primeiro tratamento, e destacam a necessidade de examinar o uso da radioterapia como uma questão global no controle do câncer. O radio-oncologista Robson Ferrigno (foto) analisa os principais achados.
Há poucas evidências sobre a variação no uso da radioterapia em diferentes países. Neste estudo de base populacional, os pesquisadores consideraram pacientes de câncer entre 15 e 99 anos de idade, a partir de dados dos registros de câncer ou de administração hospitalar em 16 localidades no Canadá, Reino Unido, Austrália e Noruega. A análise considerou o uso de radioterapia de 31 dias até 365 dias após o diagnóstico em pacientes com câncer primário, sem ocorrência de outro diagnóstico de câncer nos 5 anos anteriores. Metanálises de efeitos aleatórios quantificaram a variação com base em intervalos de predição de 95% (95% IPs).
Entre 1º de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2017, de 902 312 pacientes com novo diagnóstico de um dos 8 tipos de câncer estudados, 115 357 (12,8%) não atenderam aos critérios de inclusão e 786.955 foram incluídos na análise.
Os resultados revelam grande variação no uso da radioterapia entre as jurisdições analisadas, de 17,8 a 82,4 (estimativa agrupada de 50,2%) para câncer de esôfago, 35,5 a 55,2 (45,2%) para câncer retal, 28,6 a 54,0 (40,6%) para câncer de pulmão e 4,6 a 53,6 (19,0%) para câncer de estômago. Para pacientes com câncer retal em estágio 2–3, a variação foi maior do que para todos os pacientes com câncer retal (95% PI 37,0 a 84,6; estimativa agrupada de 64,2%). O uso de radioterapia foi pouco frequente, mas variável, em pacientes com câncer pancreático (95% IP 1,7 a 16,5%), de fígado (1,8 a 11,2%), cólon (1,6 a 5,0%) e câncer de ovário. (0,8 a 7,6%).
Pacientes com idade entre 85 e 99 anos tiveram probabilidade três vezes menor de receber radioterapia do que aqueles entre 65 e 74 anos de idade, com importante variação entre as localidades avaliadas (odds ratio [OR] 0,38; IP 95% 0,20–0· 73).
Em relação ao gênero, as mulheres tiveram probabilidade ligeiramente menor de utilização de radioterapia do que os homens (OR 0,88, 95% PI 0,77–1,01).
Houve grande variação no tempo médio até a primeira radioterapia por local do câncer a partir da data do diagnóstico, com variação substancial entre as jurisdições (por exemplo, IP esofágico 95% de11,3 dias a 112,8 dias; estimativa agrupada 62,0 dias; retal 95% PI 34,7 dias a 77,3 dias; estimativa agrupada 56,0 dias). Pacientes mais idosos tiveram menor tempo médio para realizar a primeira radioterapia, mas com variação apreciável entre os diferentes contextos (-9,5 dias em pacientes com idade entre 85-99 anos vs 65-74 anos, IP de 95% -26,4 a 7,4).
A pesquisa utilizou dados da Noruega, dos quatro países do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales), de nove províncias canadenses (Alberta, Colúmbia Britânica, Manitoba, New Brunswick, Terra Nova e Labrador, Nova Escócia, Ontário, Prince Ilha Edward e Saskatchewan) e de dois estados australianos (Nova Gales do Sul e Victoria).
Em conclusão, observam-se grandes variações, tanto na frequência da utilização de radioterapia no ano pós-diagnóstico, quanto no tempo até o primeiro tratamento de radioterapia nos países de rendimento elevado incluídos na análise, além de diferenças importantes entre as faixas etárias. Esses resultados sublinham o valor dos estudos internacionais para compreender variações na prática entre os diferentes sistemas de saúde e apoiar esforços para melhorar a prestação de cuidados.
“Até onde sabemos, este estudo estabelece pela primeira vez a frequência do uso de radioterapia, assim com o tempo até o início da radioterapia, em pacientes diagnosticados na última década com oito tipos de câncer comuns em jurisdições internacionais de três continentes”, destacam os autores.
Referência: McPhail S, Barclay ME, Swann R, Johnson SA, Alvi R, Barisic A, Bucher O, Creighton N, Denny CA, Dewar RA, Donnelly DW, Dowden JJ, Downie L, Finn N, Gavin AT, Habbous S, Huws DW, Kumar SE, May L, McClure CA, Morrison DS, Møller B, Musto G, Nilssen Y, Saint-Jacques N, Sarker S, Shack L, Tian X, Thomas RJ, Wang H, Woods RR, You H, Zhang B, Lyratzopoulos G; ICBP Module 9 Radiotherapy Group. Use of radiotherapy in patients with oesophageal, stomach, colon, rectal, liver, pancreatic, lung, and ovarian cancer: an International Cancer Benchmarking Partnership (ICBP) population-based study. Lancet Oncol. 2024 Mar;25(3):352-365. doi: 10.1016/S1470-2045(24)00032-9. PMID: 38423049.
O estudo em contexto
Por Robson Ferrigno, médico especialista em radioterapia, coordenador médico dos serviços de radioterapia do Hospital BP Paulista
A radioterapia é utilizada em aproximadamente 60% dos casos de câncer em pelo menos uma fase do tratamento para assegurar a curabilidade ou o alívio de algum sintoma. A indicação e prescrição dose de radiação em determinada região do paciente depende de vários fatores, entre eles, o tipo de câncer, as condições clínicas do paciente, a possível interação com alguma droga, a possibilidade de outros tratamentos alternativos, entre outros. Portanto, é esperado e sem qualquer surpresa que haja variação no uso e na frequência da radioterapia em diferentes países e regiões devido à variabilidade de padronização de conduta para o mesmo tipo de câncer sem necessariamente impactar o desfecho do tratamento.
Vale algumas considerações sobre o estudo em questão:
- Trata-se de uma análise de banco de dados de diferentes países em diferentes continentes, com sistemas de saúde socializados e com diferentes preocupações com custos. Isso gera diferenças em diretrizes e guias práticos.
- Foram analisados apenas oito tipo de tumores primários, sendo que metade deles (estômago, cólon, pâncreas e ovários) raramente se usa a radioterapia com finalidade curativa. Portanto, uma variação no uso e frequência da radioterapia nesses tumores é esperada.
- O estudo menciona que no câncer de reto estágios 2 e 3 houve a maior variação no emprego da radioterapia do que os outros tumores e, na parte da discussão, os autores escrevem que nessa situação a radioterapia está bem estabelecida. Isso não é verdade e discordo plenamente.
Após a publicação de um estudo alemão mostrando que a radioterapia usada antes da cirurgia era pouco melhor do que a usada após a cirurgia para o controle local, a maioria dos países, incluindo o Brasil, começaram a utilizar a radioterapia pré-operatória para praticamente todos os casos de câncer de reto independente do estágio e da localização do tumor. No entanto, a radioterapia pré-operatória no câncer de reto, associada ou não à quimioterapia, deve ser utilizada preferencialmente em pacientes com tumores do reto baixo e com indicação de amputação abdomino perineal como tentativa de preservar o esfíncter. Os pacientes com câncer de reto médio e alto submetidos primeiramente à cirurgia raramente necessitarão de radioterapia. Isso foi demonstrado recentemente pelo estudo PROSPECT apresentado no congresso da ASCO de 2023 e publicado simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine. Mas mesmo antes dessa publicação, algumas instituições já adotavam a estratégia da cirurgia primária seguida ou não de quimioterapia e sem radioterapia, enquanto outras ainda utilizavam a radioterapia pré-operatória para todos os pacientes. Esse é apenas um exemplo de que a variação do emprego da radioterapia citada no estudo para o câncer de reto estágios 2 e 3 é totalmente esperada.
Em termos de informação para direcionar estratégias de políticas de saúde em diferentes países, o estudo não traz qualquer contribuição. Apenas serve para salientar a importância da elaboração de Diretrizes de conduta para os diferentes tipos de câncer, envolvendo não só a radioterapia, mas também a cirurgia e os tratamentos sistêmicos. E mesmo com elaboração dessas diretrizes continuaremos a ter variação no uso e frequência da radioterapia porque a abordagem do câncer possui muitas variáveis.