Onconews - Estudo compara métodos de triagem para prevenção do câncer cervical em mulheres vivendo com HIV

Estudo de Joshi et al. na Nature Communication fornece evidências de que o rastreio de HPV, seguido por triagem por inspeção visual com ácido acético (VIA) e tratamento não é inferior à estratégia de teste do HPV e tratamento em mulheres vivendo com HIV. No entanto, os autores destacam que, embora não significativo, houve aumento de 58% e 48% no risco de Neoplasia Intraepitelial Cervical (NIC 2+) no braço de "teste, triagem e tratamento" em relação ao braço de "triagem e tratamento" na análise por intenção de tratar e na análise por protocolo, respectivamente. O médico epidemiologista Arn Migowski (foto) analisa os resultados.

Neste estudo, os pesquisadores buscaram comparar 'triagem e tratamento de HPV' (Braço 1) e 'rastreio de HPV, triagem VIA e tratamento de HPV' (Braço 2) em mulheres vivendo com HIV.

O tratamento foi oferecido a todas as mulheres HPV-positivas no Braço 1 e às mulheres VIA-positivas no Braço 2 com ablação térmica ou excisão de alça grande. Todas as mulheres foram submetidas a um teste de HPV repetido um ano após a randomização. O desfecho primário foi a não inferioridade da depuração do HPV do Braço 2 no acompanhamento de um ano quando comparado ao Braço 1.

De 544 participantes HPV-positivas, 433 foram randomizadas em uma proporção de 1:1 para os braços do ensaio. No início do estudo, lesões NIC 2/3 foram detectadas em 16,7% e 13,3% das mulheres nos braços 1 e  2, respectivamente. A eliminação do HPV foi observada em 56,6% (IC 95% 48,9-64,1) das mulheres no braço 1 e em 41,4% (IC 95% 34,3-48,7) das mulheres no braço 2 no acompanhamento na população com intenção de tratar (P = 0,004).

Esses resultados mostram que a estratégia de 'rastreio de HPV, triagem VIA e tratamento' não foi inferior à estratégia de 'triagem e tratamento', pois o limite inferior do intervalo de confiança de 95% do modelo de regressão foi maior que 0,49 tanto na análise de intenção de tratar (RR 0,73, IC 95% 0,59-0,91) quanto na análise por protocolo (RR 0,74, IC 95% 0,60-0,93).

“Os resultados do nosso ensaio clínico randomizado estão bem alinhados com a recomendação mais recente da Organização Mundial de Saúde para seguir a estratégia de rastreio de HPV, triagem VIA e tratamento em vez da estratégia de triagem VIA e tratamento para gerenciar mulheres que vivem com HIV com HPV-positivo”, destacam os autores. “Ao mesmo tempo, nosso ensaio também sugere que a estratégia de "triagem VIA e tratamento de HPV" tem certas vantagens e pode ser usada em mulheres quem vivem com HIV”, analisam. Os pesquisadores observam que  uma proporção significativamente maior de mulheres vivendo com HIV no braço de "triagem VIA e tratamento" poderia ser tratada com ablação térmica por uma enfermeira na própria clínica, sem necessidade de visitas adicionais, em comparação ao braço de "rastreio de HPV, triagem VIA e tratamento" (83,7% vs. 63,6%).

Como take home message, os pesquisadores alertam que é preciso equilibrar os benefícios e limitações dos dois modelos antes de definir a melhor opção de triagem, principalmente em países de baixa e média renda com alta carga de HIV e HPV.

A íntegra do artigo original de Josh et al. na Nature Communication está disponível em acesso aberto.

O estudo em contexto
Ensaio randomizado controlado compara a eficácia de dois protocolos de prevenção do câncer do colo do útero entre mulheres vivendo com HIV:
interpretação das evidências e avaliação de sua aplicabilidade para a prática clínica brasileira

Por Arn Migowski. médico epidemiologista

Joshi e colaboradores apresentam os resultados de um ensaio clínico randomizado em mulheres vivendo com HIV, demonstrando que o protocolo com triagem com a Inspeção Visual com Ácido Acético (IVA) após rastreamento com teste de HPV foi não inferior à abordagem de simplesmente rastrear com teste de HPV e tratar, de acordo com os desfechos substitutos de efetividade utilizados [1]. E esse bom resultado foi alcançado utilizando um método de triagem (IVA) com diversas limitações, tais como subjetividade e sensibilidade apenas moderada, mas que tem a vantagem de estar disponível na Índia, em países da África subsaariana e diversos países da Ásia e da América Latina. Esses resultados trazem um respaldo para o protocolo com uso da triagem, pois a perda de efetividade seria a maior preocupação ao não usar a estratégia de rastrear e tratar diretamente sem essa etapa intermediária de triagem.

Isso é uma boa notícia, pois a triagem, quando bem-sucedida, pode evitar os danos advindos do sobretratamento que invariavelmente ocorre com a estratégia de apenas rastrear e tratar, em função da baixa especificidade do rastreamento com teste de HPV nessas mulheres.

A Organização Mundial de Saúde já recomendava a estratégia de “rastrear, triar e tratar” desde 2021, com triagem por IVA ou citologia. Contudo, naquela época eles se basearam em evidências indiretas oriundas de modelagem e, agora, os resultados do presente ensaio clínico trazem mais segurança para essa recomendação.  Podemos especular se os resultados com triagem por citologia seriam ainda melhores, mas essa abordagem não foi incluída no ensaio clínico por não ser relevante para países nos quais não há amplo acesso à citologia.

É importante salientar, contudo, que os bons resultados encontrados, não significam que a abordagem de rastrear e tratar será totalmente abandonada em contextos com altíssima probabilidade de perda de seguimento, pois o próprio estudo confirmou algumas vantagens esperadas, como reduzida necessidade de referência para tratamento e novas consultas, além da perda de dois casos de câncer invasivo com a triagem, mesmo com equipe de enfermagem muito experiente na realização da IVA.

No contexto brasileiro, temos que atentar que nenhum desses dois protocolos comparados no referido ensaio clínico faz parte da prática clínica corrente. A incorporação do rastreamento com testes moleculares foi aprovada há um ano no SUS e as novas diretrizes brasileiras de rastreamento do câncer do colo do útero foram aprovadas pela Comissão Nacional de incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) em 19 de fevereiro de 2025 [2]. Nelas existem algumas recomendações diferenciadas para mulheres vivendo com HIV/aids, como a supressão de idades específicas para início e fim do rastreamento, diminuição da periodicidade do rastreamento com teste de HPV (de quinquenal para trienal) e encaminhamento direto para a colposcopia após resultado de teste de DNA-HPV positivo para qualquer tipo oncogênico. Dessa forma a diretriz já se posiciona a favor da triagem com colposcopia antes do tratamento e prescindindo até mesmo da triagem por citologia que foi recomendada para mulheres sem HIV com rastreamento positivo para outros tipos oncogênicos diferentes do 16 e do 18 [2]. Como já foram aprovadas, em breve essas diretrizes deverão ter sua versão final publicada sem alteração nas recomendações citadas acima. Além disso, neste momento estão em elaboração as novas diretrizes brasileiras para confirmação diagnóstica, tratamento de lesões precursoras e seguimento das mulheres.

Nos próximos anos o monitoramento e avaliação dessas estratégias recomendadas nas novas diretrizes brasileiras deverão nos mostrar se conseguiremos alcançar essas mulheres e garantir a integralidade do cuidado e efetividade de todo o processo. O Brasil possui muitas disparidades em saúde e é necessário avaliar se mulheres com maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde e maior risco de desenvolver câncer do colo do útero realmente serão beneficiadas pelas estratégias propostas.

Referência: 

1 - Joshi S, Muwonge R, Bhosale R, Chaudhari P, Kulkarni V, Mandolkar M, Deodhar K, Kand S, Phadke N, Rajan S, Kumar BK, Sankaranarayanan R, Basu P. A randomised controlled non-inferiority trial to compare the efficacy of 'HPV screen, triage and treat' with 'HPV screen and treat' approach for cervical cancer prevention among women living with HIV. Nat Commun. 2025 Feb 22;16(1):1888. doi: 10.1038/s41467-025-56926-3. PMID: 39987163; PMCID: PMC11846853.

2 - Ministério da Saúde. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde - Conitec. Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero: Parte I -Relatório Preliminar. Ministério da Saúde, Nov 2024.