O cirurgião de cabeça e pescoço Leandro Matos (foto), do ICESP, é primeiro autor de estudo multicêntrico que propõe uma ferramenta online capaz de prever o risco de morte de pacientes com câncer de cabeça e pescoço devido à pandemia da COVID-19. A calculadora de impacto do câncer COVID-19 (COCIC) também pode contribuir para desenvolver estratégias de mitigação após o pico da pandemia, com base em um modelo matemático. “O impacto da pandemia de COVID-19 em pacientes com câncer é inevitável, mas é possível minimizá-lo com um esforço medido pelo modelo proposto”, destacam os autores do trabalho publicado na Cancer Causes & Control.
A rápida disseminação da pandemia de SARS-CoV-2 ao redor do mundo fez com que a maioria dos serviços de saúde concentrasse seus esforços para o tratamento desses pacientes, alterando a estrutura dos sistemas de saúde. Como resultado, muitos pacientes com câncer tiveram seu tratamento adiado, aumentando o tempo de início do tratamento, o número de pacientes não tratados (o que irá alterar a dinâmica da prestação de cuidados de saúde na era pós-pandemia) e o risco de morte.
No estudo1, os pesquisadores desenvolveram uma ferramenta prática online capaz de predizer o risco de morte de pacientes com câncer usando como modelo o câncer de cabeça e pescoço, uma doença conhecida como tempo-dependente. A ferramenta utiliza um modelo matemático baseado na estimativa de risco identificado por Murphy et al.2 para prever o impacto do surto de COVID-19 no risco adicional de morrer de CCP e propor alguns cenários de mitigação. As premissas utilizadas neste estudo foram baseadas em 51.655 pacientes do Banco de Dados Nacional do Câncer dos Estados Unidos e indicaram 67 dias para o tempo de início do tratamento (TTI) como o valor de corte para aumento do risco de morte para pacientes tratados para câncer de cabeça e pescoço (CCP). “Por meio de um modelo matemático, é possível prever o aumento do risco de morrer de câncer e sugerir estratégias de mitigação à medida que a pandemia de COVID-19 diminui”, descreve a publicação.
A COCIC foi utilizada para calcular o risco de morte para pacientes com CCP em três cenários diferentes: 1 - simulações considerando diferentes volumes de cuidados médicos durante o surto COVID-19 e período de mitigação; 2 - análise de sensibilidade considerando a estimativa do impacto em diferentes serviços em todo o mundo (cinco na Europa; três na América do Norte; três na América Latina (ICESP e A.C.Camargo Cancer Center no Brasil); dois na Ásia; um na África e um na Oceania; e 3 - simular as mortes excedentes de CCP em todo o mundo com base na estimativa de novos casos e mortes para o ano de 2018 disponíveis no GLOBOCAN3, em parceria com a IARC.
A taxa de risco foi estabelecida para mortalidade geral de acordo com o tempo de início do tratamento como uma variável contínua, e esta medida foi ajustada por covariáveis que incluíram idade, sexo, raça, tipo de atendimento (seguro público ou privado), tipo de instalação, distância até o estabelecimento, local primário do câncer (orofaringe-tonsila; orofaringe-não tonsila; língua oral; laringe; hipofaringe), estágio do tumor (AJCC sétima edição), modalidade de tratamento (cirurgia isolada, radioterapia isolada; quimiorradiação, outro), ano de tratamento, escore de comorbidade e CEP (escolaridade e renda).
“A calculadora estima o tempo necessário para a recuperação após a pandemia de COVID-19, o pico e o tempo médio de espera para tratamento durante o surto de COVID-19, e o período de mitigação com base no esforço, número de pacientes expostos ao risco de morte, valor máximo de risco adicional devido ao aumento do tempo até o início do tratamento (TTI) e risco basal de morrer devido ao TTI prolongado quando o tempo ultrapassar 67 dias, conforme previamente estabelecido”, esclarecem os autores.
A calculadora também estima o número de pacientes (em circunstâncias padrão adicionadas ao volume adicional) que devem ser tratados em diferentes cenários para restabelecer o risco do baseline em até cinco anos. “Serviços com TTI mais longo no baseline serão obrigadas a adotar estratégias mais agressivas para restabelecer suas configurações, o que provavelmente será mais desafiador uma vez que estão localizados em países com recursos limitados”, observam.
Matos ressalta que as simulações do paper trabalharam com cenários que os pesquisadores achavam pouco prováveis no momento da realização do projeto. “No entanto, a realidade tem se mostrado ainda pior. Tenho certeza que nenhum centro oncológico brasileiro voltou a atender com plena capacidade e, dessa forma, a mortalidade por câncer pelo atraso no tratamento devido à pandemia será muito maior do que estimamos inicialmente”, lamenta.
A calculadora é capaz de se ajustar a qualquer outra situação, incluindo outras variedades de câncer ou doenças tempo-dependentes, alterando os parâmetros de acordo com as características de cada doença. Para fornecer estimativas mais precisas, o modelo deve ser ajustado para cada ambiente clínico individual; covariáveis; e diferentes valores de risco de TTI para cada câncer.
“O modelo proposto demonstra que quanto mais a prestação de cuidados de saúde é mantida durante o surto de COVID-19, e quanto mais é aumentada durante o período de mitigação, mais cedo será a recuperação e menor será o risco adicional de morte devido ao tempo prolongado de iniciar o tratamento em um sistema já estressado”, destacam os autores.
O cirurgião acrescenta que o principal objetivo é que a calculadora seja amplamente utilizada no país, inclusive para alertar os governos para essa segunda onda da pandemia que estamos vivenciando. “Se não mitigarmos esse atraso, passaremos para um novo baseline de risco de se morrer de câncer no Brasil e em muitos países do mundo, o que pode mudar completamente o panorama do tratamento oncológico e o prognóstico dos nossos pacientes”, avalia.
O trabalho contou com o apoio do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) e dos centros participantes.
A calculadora de impacto do câncer COVID-19 (COCIC) está disponível gratuitamente em http://cocic-calc.com.
Referências:
1 - Matos, L.L., Forster, C.H.Q., Marta, G.N. et al. The hidden curve behind COVID-19 outbreak: the impact of delay in treatment initiation in cancer patients and how to mitigate the additional risk of dying—the head and neck cancer model. Cancer Causes Control (2021). https://doi.org/10.1007/s10552-021-01411-7
2 - Murphy CT, Galloway TJ, Handorf EA et al (2016) Survival Impact of Increasing Time to Treatment Initiation for Patients With Head and Neck Cancer in the United States. J Clin Oncol 34:169–178
3 - IARC (2020) Global Cancer Observatory (GLOBOCAN). International Agency for Research on Cancer, Lyon, France