A Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO) emitiu um guideline1 para rastreamento do câncer do colo do útero, uma das principais causas de morte por câncer entre mulheres em todo o mundo. A diretriz foi publicada dia 12 de outubro no Journal of Global Oncology e fornece recomendações baseadas em evidências para o rastreamento, acompanhamento dos resultados HPV-positivos e tratamento de mulheres com pré-câncer cervical. A oncologista Angélica Nogueira Rodrigues, presidente do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG), comentou para o Onconews.
Esta é a segunda de uma série de três diretrizes da ASCO em câncer do colo do útero que fornecem recomendações adaptadas à disponibilidade de recursos (básico, limitado, avançado e máximo). A primeira recomendação sobre o tratamento de mulheres com câncer cervical invasivo2 foi publicada online em maio e em breve será finalizada a orientação sobre vacinação contra o papilomavírus humano (HPV) ou prevenção primária do câncer do colo do útero.
Embora o câncer cervical seja uma doença em grande parte evitável, em países de baixa renda muitas vezes o rastreamento populacional e programas de vacinação contra o HPV não são realizados de maneira efetiva. Como resultado, mais de 85% dos diagnósticos e mortes pela doença ocorrem em regiões menos desenvolvidas.3 “A criação de guidelines para prevenção primária e secundária pela ASCO facilita o acesso do médico assistente à melhor evidência científica e traz a perspectiva de melhor adesão, uma vez que é adaptado ao nível de recurso disponível. O acesso à prevenção e tratamento do câncer do colo do útero varia não só entre países, mas muitas vezes entre regiões de um mesmo país. Esta é a realidade do Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, o câncer de colo de útero é hoje a terceira causa de câncer na mulher brasileira, mas segue sendo a primeira causa na região Norte e em alguns estados da região Nordeste”, afirma a oncologista Angélica Nogueira Rodrigues, presidente do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG).
Segundo a especialista, o exame de colpocitologia oncótica (CCO), o preventivo de Papanicolaou, mostrou-se uma das ferramentas mais eficientes de prevenção de câncer já desenvolvidas, levando a reduções drásticas de incidência de câncer de colo de útero nas regiões onde houve sua implementação massiva. “O grande problema de alta incidência nas regiões do globo de média e baixa renda é a não adesão adequada”, diz. “O guideline apresentado pela ASCO, assim como outros que o precederam, defendem a possibilidade de se realizar exames de CCO com espaçamentos maiores, baseando-se na presença ou ausência do DNA do HPV na paciente. Diante do fato de a infecção por HPV ser indolente, e anteceder o câncer em anos na grande maioria dos casos, o espaçamento na mulher sem o vírus se mostrou segura, além de reduzir custo e o desconforto com o exame”, acrescenta.
A diretriz recomenda que todas as mulheres nos grupos de idade adequados, independente do cenário de recursos, sejam rastreadas para lesões precursoras do câncer cervical. "Toda mulher deve ter pelo menos um bom rastreio de câncer cervical em sua vida. Infelizmente, não estamos sequer perto disso", disse Surendra S. Shastri, professor de oncologia preventiva no Tata Memorial Center, em Mumbai, Índia e membro do Painel de especialistas da ASCO que desenvolveu a diretriz. "Esperamos que este guideline nos aproxime do objetivo de oferecer cuidados preventivos de alta qualidade para todas as mulheres, independentemente da sua condição", acrescentou.
O trabalho é o primeiro a incorporar o estudo apresentado no congresso da ASCO em 2013 que mostrou que a inspeção visual com ácido acético (vinagre) - um método barato e simples, também conhecido como VIA - pode reduzir a mortalidade por câncer do colo do útero em algumas das regiões mais pobres do mundo. No entanto, os autores do documento ressaltam que este método só deve ser usado como um ponto de partida para o teste do HPV, vírus responsável pelo câncer do colo do útero. “É importante ressaltar que este antigo método se mostrou eficaz em reduzir mortalidade em uma região de extrema carência de recursos de saúde, mas não deve substituir exames como o teste de CCO ou o HPV DNA, quando estes estiverem disponíveis”, afirma a especialista.
A diretriz
A diretriz foi desenvolvida por um painel multidisciplinar, com especialistas de diversas regiões do mundo, e delineou os padrões mínimos para o rastreio do câncer do colo do útero em quatro cenários distintos de serviços de saúde: básico, limitado, avançado e máximo. Os níveis dizem respeito não só a um país ou recursos financeiros da região, mas também à força de seu sistema de saúde - incluindo pessoal, infraestrutura e acesso aos serviços.
As recomendações foram feitas utilizando guidelines já existentes, evidências baseadas na literatura e experiência clínica. Todas as recomendações refletem o consenso formal de especialistas. "Nossa orientação é consistente com as orientações norte-americanas e europeias existentes, assim como está alinhada com o importante trabalho da Organização Mundial de Saúde, que emitiu um guideline global para rastreio do câncer do colo do útero em 2013”, explicou Philip Castle, membro do Steering Committee do Painel de Peritos da ASCO e professor de epidemiologia e saúde pública no Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque. O trabalho da ASCO contribui ao fornecer um conjunto mínimo de padrões em todos os países com base nos recursos disponíveis, além de acrescentar o estudo VIA, de 2013, e outros dados recentes.
Recomendações-chave
O teste de DNA do papilomavírus humano (HPV) é recomendado em todos os cenários de disponibilidade de recursos. “No entanto, o teste de HPV DNA ainda tem um alto custo e os esforços para a adesão a exames frequentes de CCO não devem ser arrefecidos até a efetiva incorporação e disponibilização na rede pública no teste de HPV DNA”, alerta Angélica.
VIA pode ser utilizado em um cenário básico, onde não houver condição de realização da CCO ou teste do HPV se torne disponível. Embora o teste do HPV associado ao exame de Papanicolau seja uma opção no cenário de máxima disponibilidade de recursos, o painel considera que o benefício adicional é limitado frente aos custos da dupla triagem. O guideline ressalta ainda a possibilidade da auto-coleta de amostras para o teste.
No cenário máximo de recursos, mulheres com idades entre 25 e 65 anos devem realizar o rastreamento a cada 5 anos (≥9 rastreios durante a vida). No cenário avançado, o rastreamento é recomendado para mulheres entre 30 e 65 anos. Caso dois testes consecutivos se apresentem negativos em intervalos de 5 anos, o rastreamento pode ser realizado a cada 10 anos (≥ 5 rastreios durante a vida).
Em locais com recursos limitados, o rastreamento pode ser realizado por mulheres com idades entre 30 e 49 anos, a cada 10 anos (≥ 3 rastreios durante a vida); e em regiões com recursos básicos, mulheres com idades entre 30 e 49 anos devem realizar o rastreamento de uma a três vezes durante esse faixa etária (≥1 rastreio na vida).
“A diretriz enfatiza que as mulheres acima de 65 anos que devem interromper o rastreamento são aquelas extensivamente rastreadas e que tiveram resultados consistentemente negativos. No Brasil, como muitas mulheres não fizeram o rastreamento regularmente, a idade isoladamente não deve ser o fator de interrupção do rastreamento. Em análise de mais de 50 milmulheres com câncer de colo de útero tratadas nas instituições públicas do Brasil, 20% tem mais de 65 anos (Nogueira-Rodrigues, Gynecologic Oncology 2014)”, esclarece a oncologista.
A diretriz também fornece recomendações de triagem específicas para as mulheres que são HIV positivo, aquelas que tenham dado à luz recentemente e mulheres que foram submetidas à histerectomia.
Acompanhamento e tratamento
Após um resultado de teste de DNA positivo para HPV, VIA pode ser utilizado para triagem (follow-up) em cenários básico e limitado. Se VIA foi utilizado como um rastreio primário com resultados anormais, as mulheres devem receber tratamento. Em outros cenários, a genotipagem do HPV e/ou citologia pode ser utilizada para triagem.
As mulheres com resultados anormais de triagem devem receber tratamento imediato nos cenários básico e limitado, ou colposcopia em todos os outros cenários. As opções de tratamento recomendadas para mulheres com lesões precursoras de câncer são a cirurgia de alta frequência (CAF ou LEEP) ou tratamentos ablativos como a crioterapia ou coagulação a frio. O follow-up de doze meses após o tratamento é recomendado em todos os cenários.
O painel também salienta a necessidade de desenvolver infraestrutura para o teste de HPV, diagnóstico e tratamento em cenários básicos e/ou naqueles sem rastreamento populacional atual.
A orientação tem o endosso da International Gynecologic Cancer Society (IGCS) e daAmerican Society for Colposcopy and Cervical Pathology (ASCCP).
Referências:
1 – Secondary Prevention of Cervical Cancer: American Society of Clinical Oncology Resource-Stratified Clinical Practice Guideline - Published online before print October 12, 2016 - doi:10.1200/JGO.2016.006577JGO October 12, 2016JGO006577
2 - Chuang LT, Feldman S, Nakisige C, et al. Management and Care of Women With Invasive Cervical Cancer: ASCO Resource-Stratified Clinical PracticeGuideline. J ClinOncol. 2016 Sep 20;34(27):3354-5.
3 – International Agency for Research on Cancer: GLOBOCAN 2012 Cervical Cancer: Estimated incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012.