Vale a pena adicionar quimioterapia intraperitoneal hipertérmica (HIPEC) ao manejo do câncer epitelial de ovário (EOC) avançado na era dos inibidores da PARP (PARPi)? A questão é tema de artigo publicado no periódico Cancer Drug Resistence, que tem como autores os médicos Thales Paulo Batista*, cirurgião oncologista do Real Instituto de Cirurgia Oncológica, em Recife, e Graziela Zibetti Dal Molin, oncologista clínica na BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
A HIPEC emergiu como um tratamento abrangente para o EOC avançado e, apesar de muitas críticas, mostrou-se custo-efetivo e capaz de aumentar a sobrevivência livre de progressão e global em portadoras de EOC com grande volume de doença submetidas a citorredução de intervalo após quimioterapia sistêmica neoadjuvante, sem prejuízo importante à qualidade de vida das pacientes em comparação ao tratamento convencional endovenoso. Seu racional se baseia no efeito citotóxico direto da hipertermia sobre as células neoplásicas, no sinergismo com alguns quimioterápicos e nas vantagens farmacocinéticas da via intraperitoneal para administração destas drogas. Alguns estudos também revelam que hipertermia pode reduzir os mecanismos de resistência celular às platinas e induzir uma eficiente resposta imune anticâncer a partir da exposição de proteínas de choque térmico na superfície celular. “Além disso, esta técnica aplica o quimioterápico apenas no intraoperatório, evitando a necessidade de cateteres de infusão peritoneal, o que anula a morbidade relacionada a estes dispositivos e consequentemente alguns problemas de intolerância à quimioterapia intraperitoneal”, esclarecem os autores.
A terapia sistêmica à base de platinas representa o pilar do tratamento do EOC, ao passo que o doublet de carboplatina e paclitaxel constitui atualmente o principal regime de quimioterapia endovenosa em uso. A utilização da via intraperitoneal também se apresenta como importante alternativa terapêutica multidisciplinar para o EOC, sobretudo por seu padrão de disseminação preferencialmente celômico. No entanto, o cenário do tratamento do câncer epitelial de ovário está mudando rapidamente e os PARP desempenham atualmente um papel fundamental no manejo desta neoplasia. Os PARPi passaram ao tratamento de primeira linha com base nos recentes ensaios clínicos de fase 3 SOLO-1, PRIMA, VELIA e PAOLA-1, e já haviam demonstrado anteriormente um importante papel como terapia de manutenção para o EOC recidivado sensível à platina. Nesse sentido, uma importante questão que vem à tona é o que esperar da HIPEC frente aos surpreendentes benefícios alcançados com os PARPi.
A resposta tumoral ao tratamento sistêmico com platinas constitui um importante pré-requisito ao tratamento com PARPi. Em seus mecanismos de ação, estes agentes interferem nos processos fundamentais de transcrição e replicação celular, bloqueando a separação das cadeias de DNA. Assim, dentre outros efeitos, tais agentes desencadeiam uma série de respostas aos danos do DNA (DDR), criando um “ambiente molecular” favorável que potencializa a atividade de agentes farmacológicos que têm como alvos estas vias celulares. Dentre estes agentes, os PARPi são os mais utilizados na atualidade.
“Uma revisão destes temas leva a interessantes observações do ponto de vista clínico. Alguns especialistas continuam apoiando fortemente o uso da quimioterapia intraperitoneal para pacientes submetidas a citorredução “ótima”, particularmente aqueles sem doença residual e aqueles com mutações BRCA ou outras manifestações de deficiência dos mecanismos de reparo homólogo (HRD)”, observam os autores.
Por exemplo, análises translacionais dos ensaios clínico GOG172 e estudos comparativos demonstraram importante melhoria das sobrevivências livre de progressão e global em portadoras de mutações BRCA em comparação com seus pares tratados apenas com quimioterapia endovenosa. Achados semelhantes também foram relatados em favor da HIPEC em pacientes BRCA mutadas, os mesmos principais pacientes-alvo dos PARPi. “Do ponto de vista cirúrgico, mesmo em centros experientes, o crescimento tumoral precoce tem sido observado após a citorredução completa em 22% a 28% das pacientes ao tempo da avaliação radiológica pós-operatória antes do início da quimioterapia adjuvante. Isso demonstra claramente a necessidade de um início mais precoce de tratamentos adjuvantes após a cirurgia citorredutora, e a HIPEC pode representar uma maneira promissora de abordar esse problema”, afirmam.
Noutro extremo, “é importante ressaltar que estudos anteriores demonstraram sobrevivências semelhantes na doença sensível e resistente à platina em pacientes submetidos ao HIPEC, sugerindo que esta terapia poderia reverter ou contornar a resistência à quimioterapia e poderia ser usada em adição aos PARPi, inclusive para pacientes sem mutação do gene BRCA”, acrescentam.
Os autores observam que a HIPEC continua sendo uma opção de tratamento importante para a EOC avançada mesmo após o surgimento dos PARPi. “Para melhorar os resultados deste tratamento, as pacientes-alvo devem ser aqueles com tumores patogenéticos tipo I comprovados por imuno-histoquímica e aqueles com alguma manifestação de deficiência dos mecanismos de reparo homólogo, como as portadoras de mutações patogênicas do gene BRCA. Além disso, parece ser promissora a combinação de PARPi e HIPEC mesmo em pacientes sem mutação BRCA, bem como nas recorrências pós-PARPi, o que deveria ser explorado prospectivamente”, concluem.
Referência: Batista TP, Dal Molin GZ. Can HIPEC be used against platinum-resistance and for inducing sensitivity to PARP inhibitors in ovarian cancer?. Cancer Drug Resist 2020;3:[Online First]. http://dx.doi.org/10.20517/cdr.2020.27
* Thales Paulo Batista é também cirurgião oncologista do IMIP – Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira e docente do Centro de Ciências Médicas da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco.