Um estudo publicado no Journal of Global Oncology (JGO)1 por pesquisadores brasileiros buscou estimar o impacto da falta de acesso a terapias anti-HER2 na mortalidade de pacientes com câncer de mama avançado HER2-positivo tratados no sistema de saúde pública no Brasil. O estudo concluiu que a introdução dos medicamentos trastuzumabe e pertuzumabe no SUS poderia evitar 768 mortes prematuras nos próximos 2 anos. O oncologista Carlos Barrios (foto), diretor-executivo do LACOG e um dos autores do estudo, comenta para o Onconews.
“O artigo procura evidenciar que a falta de acesso ou demora na aprovação de medicamentos com benefício comprovado tem consequências práticas que podem ser estimadas e mensuradas em tempo e qualidade de vida”, afirma Carlos Barrios. “O exemplo do acesso ao tratamento anti-HER2 é muito claro, pois como já demonstramos em um trabalho anterior, quase 5000 mulheres morreram no SUS do Brasil entre 2006 a 2013 em consequência da falta de trastuzumabe no cenário adjuvante”, diz.
No Brasil, o SUS abrange cerca de três quartos da população2 e o acesso à terapia alvo-HER2 é restrito. O trastuzumabe está disponível para o tratamento adjuvante de pacientes com doença em estádio inicial desde 2013. Apesar de incluído na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS)3, o sistema de saúde público brasileiro não fornece o trastuzumabe no cenário da doença avançada. De acordo com os autores, os pacientes do sistema privado têm acesso ao trastuzumabe (desde 1999), lapatinibe (desde 2007), pertuzumabe (desde 2013), e T-DM1 (desde 2014).
O estudo
As estatísticas publicadas pelo INCA4 foram utilizadas para definir a incidência de câncer de mama no Brasil.O INCA estima 57,960 novos casos de câncer de mama em 2016, dos quais 73,7% (42.717) serão cobertos pelo sistema público de saúde. De acordo com o estudo AMAZONE5, cerca de 20% desses casos são HER2-positivo (8543), dos quais 94% (8.030) com doença estadios I a III e 6% (513) com estadio IV.
Assumindo uma incidência constante nos últimos 5 anos, foi calculado o número de mulheres diagnosticadas com câncer de mama metastático em 2016 como a soma dos diagnósticos novos em 2016, mais as recidivas estimadas em pacientes diagnosticados nos últimos 5 anos. As taxas de recorrência para pacientes com diagnóstico de câncer de mama HER2-positivo estádios I a III tratados com quimioterapia mais trastuzumabe foram calculados com base em dados publicados a partir do estudo HERA6,7.
Foram considerados três potenciais grupos de tratamento para esta análise. Os pacientes poderiam ser tratados com quimioterapia isolada, quimioterapia mais trastuzumabe, ou quimioterapia mais trastuzumabe e pertuzumabe.
Os dados de sobrevida para o braço de quimioterapia isolada foram baseados nos resultados do ensaio clínico randomizado publicado por Slamon et al8 em 2001. Os dados da sobrevida para os outros dois grupos, quimioterapia mais trastuzumabe versus quimioterapia mais trastuzumabe e pertuzumabe, tiveram por base os resultados do estudo CLEOPATRA.9
Resultados
Os pesquisadores estimaram que 2.008 mulheres serão diagnosticadas com câncer de mama metastático HER2-positivo em 2016, número foi obtido pela soma das pacientes com doença em estágio IV em 2016 (513 mulheres), mais aquelas que desenvolvem uma recorrência da doença após receber tratamento (neo) adjuvante (1.495 mulheres) nos últimos 5 anos (estimado com base nos resultados do estudo HERA).
De acordo com os resultados do estudo CLEOPATRA e do estudo publicado por Slamon et al6 em 2001, a mediana de sobrevida global para os grupos de tratamento foi estimado como se segue: 20,3 meses para a quimioterapia isolada; 40,8 meses para quimioterapia mais trastuzumabe; e 56,5 meses para quimioterapia mais trastuzumabe e pertuzumabe.
Considerando 2.008 mulheres com câncer de mama HER2-positivo metastático em 2016 e com base nos resultados de sobrevida global, as taxas de mortalidade média de 50, 25 e 18 mortes por mês foram estimadas para o tratamento do braço isolado de quimioterapia, quimioterapia mais trastuzumabe e quimioterapia mais trastuzumabe e pertuzumabe, respectivamente.
Com a aplicação destas taxas de mortalidade mensais para os próximos 24 meses, os pesquisadores calculam que das 2.008 mulheres com doença metastática em 2016, 808 mulheres estariam vivas após 2 anos de follow-up, se tratadas com quimioterapia isolada. Se estas mesmas mulheres forem tratadas com quimioterapia mais trastuzumabe (como no braço controle do estudo CLEOPATRA), o número de pacientes vivas após 2 anos aumentaria para 1.408, o que representa um ganho absoluto de mais de 600 mulheres vivas após 2 anos. Além disso, se receberem quimioterapia, trastuzumabe e pertuzumabe, considerado o atual padrão ouro de tratamento, 1.576 mulheres devem estar vivas em 2018, um ganho absoluto de 768 pacientes.
“É importante reconhecer que o problema é muito amplo e complexo, com a participação de diversos segmentos: governo, saúde suplementar, indústria farmacêutica, sociedade organizada, pacientes e médicos, entre outros. A solução, ou as soluções, somente deverão ser geradas através de um diálogo construtivo, desarmado, livre de interesses e ideologias e que tenha como foco e objetivo final o melhor tratamento dos pacientes. Na minha opinião, nos falta no momento uma liderança identificável, reconhecida e sensibilizada que possa congregar os diferentes segmentos em uma mesa de trabalho, afirma Barrios.
Segundo o especialista, a divulgação e discussão da realidade, que envolve não somente a falta dos medicamentos, mas também aspectos importantes de custos e orçamento, é um passo inicial que poderá estimular este diálogo. “Como sociedade, precisamos definir quanto estamos dispostos a gastar por um paciente com câncer, e como deve ser esse gasto. Temos um longo caminho pela frente. Nosso artigo é uma provocação, que pode contribuir para que alguns dos segmentos comprometidos sejam estimulados, se movimentem e saiam da inércia, da acomodação e do estado anestésico que identificamos em boa parte da nossa sociedade e nas nossas instituições quando enfrentamos certos problemas mais difíceis”, conclui.
Além de Barrios, participaram do trabalho os oncologistas Márcio Debiasi, do LACOG, PUCRS e Hospital do Câncer Mãe de Deus (HMD); Tomás Reinert, do HMD; Maira Caleffi, presidente da Federacão Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (FEMAMA); Rafael Kaliks, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor-médico do Oncoguia; Gustavo dos Santos Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e médico do Hospital Sírio-Libanês; Gilberto Amorim, do Centro de Oncologia D’Or; e Carlos Sampaio, da Clínica AMO.
Referências:
1 - Estimation of Premature Deaths From Lack of Access to Anti-HER2 Therapy for Advanced Breast Cancer in the Brazilian Public Health System - Márcio Debiasi, Tomás Reinert, Rafael Kaliks, Gilberto Amorim, Maira Caleffi, Carlos Sampaio, Gustavo dos Santos Fernandes and Carlos Barrios - Published online before print July 20, 2016, doi:10.1200/JGO.2016.005678
2 - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: Analysis of results
3 - World Health Organiazation: 19th Model List of Essential Medicines (April 2015).
4 - Instituto Nacional de Câncer: Brazil Cancer Incidence 2016.
5 - Simon SD, Bines J, Barrios CH, et al: Clinical characteristics and outcome of treatment of Brazilian women with breast cancer treated at public and private institutions—The AMAZONE project of the Brazilian breast cancer study group (GBECAM). San Antonio Breast Cancer Symposium, San Antonio, TX, December 11, 2009 (abstr 3082).
6 - Piccart-Gebhart MJ, Procter M, Leyland-Jones B, et al - (2005) Trastuzumab after adjuvant chemotherapy in HER2-positive breast cancer. N Engl J Med353:1659–1672.
7 - Goldhirsch A, Gelber RD, Piccart-Gebhart MJ, et al. (2013) - 2 years versus 1 year of adjuvant trastuzumab for HER2-positive breast cancer (HERA): An open-label, randomised controlled trial. Lancet 382:1021–1028.
8 - Slamon DJ, Leyland-Jones B, Shak S, et al. (2001) - Use of chemotherapy plus a monoclonal antibody against HER2 for metastatic breast cancer that overexpresses HER2. N Engl J Med 344:783–792.
9 - Swain SM, Kim SB, Cortés J, et al. (2013) - Pertuzumab, trastuzumab, and docetaxel for HER2-positive metastatic breast cancer (CLEOPATRA study): Overall survival results from a randomised, double-blind, placebo-controlled, phase 3 study.Lancet Oncol 14:461–471.