A exposição prévia a análogos da talidomida, particularmente a lenalidomida, foi associada a um risco aumentado de neoplasias mieloides relacionadas à mutação TP53 (t-MNs), de acordo com estudo publicado na Blood. Sperling et al. avaliaram as características clínicas de 416 pacientes diagnosticados com t-MNs com base no esquema de classificação da Organização Mundial da Saúde de 2016 e a análise multivariada confirmou associação significativa entre mutações TP53 e a exposição prévia a análogos da talidomida (odds ratio [OR] = 3,14, IC 95% 1,60-6,18, p = 0,0009). O oncohematologista Angelo Maiolino (foto) comenta os principais achados.
O pesquisador senior, Koichi Takahashi, da Universidade do Texas MD Anderson Cancer Center, explica que os t-MNs são malignidades mieloides secundárias – tipicamente na forma de síndromes mielodisplásicas (SMD) ou leucemia mieloide aguda (LMA) – que ocorrem em pacientes previamente tratados ou expostos a quimioterapias citotóxicas ou radioterapia. A incidência é de cerca de 0,5% a 1% em pacientes com tumores sólidos.
Os análogos da talidomida são usados predominantemente para o tratamento do mieloma múltiplo (MM), com administração prolongada como terapia de manutenção. ” Nessa análise, que envolveu 416 pacientes com t-MN e histórico de exposição prévia, descobrimos que as mutações TP53 foram significativamente associadas ao tratamento com análogos da talidomida, especificamente lenalidomida. Demonstramos experimentalmente que o tratamento com lenalidomida fornece uma vantagem seletiva para células-tronco e progenitoras hematopoiéticas mutantes Trp53 (HSPCs) in vitro e in vivo, cujo efeito foi específico para HSPCs mutantes Trp53 e não foi observado em HSPCs com outras mutações de hematopoiese clonal”, descrevem os autores.
A análise revelou, ainda, que diante das diferenças na degradação de CK1a, o tratamento com pomalidomida não mostrou nível equivalente de vantagem seletiva para HSPCs mutantes de Trp53, fornecendo uma justificativa biológica para seu uso em pacientes com alto risco de t-MN.
Dos 416 pacientes com t-MNs, 40% tinham t-AML e 60% tinham t-MDS. Cerca de metade (45%) havia recebido tratamento prévio apenas com quimioterapia, 17% apenas com radiação e 39% com ambos. O período de latência mediana desde a exposição inicial ao tratamento até o diagnóstico de t-MN foi de 6,2 anos. Houve um período de latência significativamente menor para t-AML do que para t-MDS (5,0 vs. 6,4 anos; p=0,0283).
A maioria dos pacientes (85%) teve pelo menos uma mutação genética detectada, e as mais comuns estavam envolvidas na resposta ao dano do DNA (TP5=37%, PPM1D=19%). Além da associação encontrada entre mutações TP53 e exposição prévia ao análogo da talidomida, a análise multivariada também mostrou associação com alcaloides da vinca (OR=1,76, IC 95% 1,05-2,93; p=0,031) e associação negativa com inibidores da topoisomerase (OR =0,49, IC 95% 0,26-0,91; p=0,023).
“Nosso resultado pode oferecer uma abordagem personalizada para reduzir o risco de t-MNs”, disse Takahashi “Primeiro, talvez os pacientes com MM devam ser rastreados para hematopoiese clonal. Se os pacientes tiverem hematopoiese clonal com mutação em TP53, nossos resultados sugerem que o risco de t-MN pode ser mitigado evitando o uso de lenalidomida”, destaca.
Em síntese, diante desses resultados não significa que se deve evitar o uso de lenalidomida o tempo todo, mas observar o alerta de Takahashi e colegas, indicando que em pacientes específicos com hematopoiese clonal com mutação em TP53, a lenalidomida pode aumentar o risco de t-MN e para esses pacientes em particular, a mudança para pomalidomida pode ser considerada.
Segundo o oncohematologista Ângelo Maiolino, professor de hematologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador de hematologia do Americas Centro de Oncologia Integrado, já se sabe por vários estudos clínicos que particularmente a lenalidomida tem o potencial de aumentar o aparecimento de neoplasias mieloides secundárias. "Aqui nesse estudo ficou claro que essa questão ocorre a partir da mutação do TP53. Os autores avaliaram o dado clínico e, de modo experimental, identificaram que as mutações do TP53 que podem levar o aparecimento de mielodisplasias secundárias e neoplasias mieloides foram significativamente associadas ao tratamento com a lenalidomida", afirma. "Interessante observar que os autores falam em análogos da talidomida, mas a talidomida em si não foi avaliada. É possível que pelo mecanismo de ação semelhante, a talidomida também apresente um aumento de risco, mas não dá para chegar a essa conclusão. Acho importante destacar que a pomalidomida, uma terceira geração desses imunomoduladores análogos a talidomida, não provocaria esse tipo de mutação, porque o mecanismo que induz o aparecimento da mutação TP53 não ocorreria com a pomalidomida. Então, pode ser que um paciente de alto risco para o desenvolvimento de neoplasia mieloide, que fosse avaliado previamente, ao invés de ser canditato a lenalidomida, pudesse ser candidato a pomalidomida", observa.
Maiolino ressalta que a lenalidmomida é um fármaco fundamental no tratamento do mieloma múltiplo e hoje é usado na primeira linha de tratamento, tanto para pacientes candidatos à transplante como para não candidatos. "De uma forma bastante elegante, os autores demonstram o mecanismo mutagênico potencial da lenalidomida para neoplasia mieloide. No entanto, é um medicamento absolutamente imprescindível, e por isso os resultados devem ser analisados com cautela. O risco aumentado de neoplasia mieloide já é bem conhecido, mas obviamente o benefício com o tratamento é muito superior a esse risco. O autor sugere que pacientes que pudessem ter identificado previamente uma alta probabilidade de uma neoplasia mieloide secundária, talvez pudessem considerar o uso da pomalidomida, o que deve ser feito a partir de estudos clínicos", avalia.
Referência: Sperling AS, Guerra VA, Kennedy JA, et al. Lenalidomide promotes the development of TP53-mutated therapy-related myeloid neoplasms. [publicado online ahead of print, 5 de maio de 2022]. Blood blood.2021014956. https://doi.org/10.1182/blood.2021014956