Estudo caso-controle publicado no Lancet Oncology avaliou a associação entre o status BRCA, câncer de ovário e microbioma cervicovaginal. “Apesar de nossos achados sugerirem que o microbioma está implicado no risco de câncer ovariano, a ligação entre disbiose e câncer de ovário ainda precisa ser melhor avaliada, assim como estratégias de redução de risco”, sugerem os autores. A oncologista Alessandra Morelle (foto), médica do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, e membro do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG), comenta o trabalho.
Foram consideradas mulheres de 18 a 87 anos da República Tcheca, Alemanha, Itália, Noruega e Reino Unido com câncer de ovário epitelial e controles saudáveis. O grupo BRCA foi composto por mulheres com mutação BRCA1 mas sem câncer de ovário e controles que eram BRCA selvagem. Amostras cervicovaginais foram coletadas de todas as participantes com o sistema ThinPrep e, em seguida, submetidas ao sequenciamento do gene 16S rRNA.
“Para cada amostra nós calculamos a proporção de lactobacilos (isto é, Lactobacillus crispatus, Lactobacillus iners, Lactobacillus gasseri, e Lactobacillus jensenii), que são essenciais para a geração de um baixo pH protetor no microbioma da região cervicovaginal. Agrupamos amostras naquelas em que os lactobacilos foram responsáveis por pelo menos 50% das espécies presentes (comunidade Tipo L) e naquelas em que lactobacilos representavam menos de 50% das espécies presentes (comunidade Tipo O). Avaliamos a associação entre o status BRCA, o status de câncer ovariano e o tipo de microbioma cervicovaginal”, descrevem os autores.
Resultados
As participantes foram recrutadas entre 2 de janeiro de 2016 e 21 de julho de 2018. O grupo de câncer ovariano (n = 360) incluiu 176 mulheres com câncer de ovário epitelial, 115 controles saudáveis e 69 controles com condições ginecológicas benignas.
O grupo BRCA (n = 220) incluiu 109 mulheres com mutações BRCA1, 97 controles saudáveis com tipo selvagem para BRCA1 e BRCA2, além de 14 controles com uma condição ginecológica benigna e tipo selvagem para BRCA1 e BRCA2. No grupo de câncer de ovário, as mulheres com 50 anos ou mais apresentaram maior prevalência de microbioma tipo O (81 [61%] de 133 casos de câncer ovariano e 84 [59%] de 142 controles saudáveis) comparadas com mulheres com menos de 50 anos (23 [53%] de 43 casos e 12 [29%] de 42 controles).
No grupo de câncer ovariano, as mulheres com menos de 50 anos tiveram maior prevalência de microbioma tipo O do que os controles pareados por idade (odds ratio [OR] 2 · 80 [95% CI 1 · 17-6 · 94]; p = 0 · 020).
No grupo BRCA, mulheres com mutações no gene BRCA1 menores de 50 anos também foram mais propensas a ter microbiota tipo O em relação aos controles pareados por idade (OR 2 · 79 [IC95% 1 · 25–6 · 68]; p = 0,012), após ajuste para gravidez. Este risco aumentou ainda mais se mais de um familiar de primeiro grau foi afetado por qualquer tipo de câncer (OR 5 · 26 [95% CI 1 · 83–15 · 30]; p = 0,0022).
“Em ambos os grupos notamos que quanto mais jovens os participantes, mais forte foi a associação entre o microbioma tipo O, o status de câncer de ovário ou de mutação BRCA1”, concluem os autores.
“A presença de câncer de ovário ou fatores conhecidos por afetar o risco para a doença (idade e mutações germinativas BRCA) foram significativamente associadas com microbioma cervicovaginal tipo O. Se a reinstalação de um microbioma tipo L, usando por exemplo supositórios vaginais contendo lactobacilos vivos, alteraria a composição do microbioma no trato genital feminino e nas trompas (local de origem do câncer de ovário seroso de alto grau), e se tais mudanças poderiam se traduzir em redução de risco de câncer de ovário precisa ser investigado”, propõem.
Reequilibrar o microbioma cervicovaginal pode impactar na prevenção do câncer de ovário?
Por Alessandra Morelle
A microbiota tem sido tema de estudo em várias áreas da medicina nos últimos anos, e já foi identificada a associação entre o microbioma e respostas a determinados tratamentos, como a imunoterapia, bem como sua correlação com complicações relacionadas ao tratamento. Além disso, é um dos termos da moda nas redes sociais que falam de saúde, e até por isso precisamos ter o olhar cauteloso para identificar o que realmente tem respaldo científico.
Este estudo de caso-controle multicêntrico recrutou pacientes com câncer de ovário e mulheres saudáveis, e considerou o status da mutação BRCA das participantes. Os microbiomas cervicovaginais de todas as mulheres foram analisados. O resultado da análise foi dividido em pacientes com microbioma tipo O, onde menos de 50% das espécies presentes no material eram compostas por lactobacilos; e o microbioma tipo L, onde mais de 50% das espécies do material eram compostas por lactobacilos.
O primeiro achado deste estudo foi que mulheres saudáveis a partir dos 50 anos de idade possuem mais frequentemente o microbioma tipo O, diferente das mais jovens saudáveis, que apresentam com mais frequência o microbioma tipo L. Da mesma forma, mulheres com história de uso de anticoncepcional oral ou reposição com hormônios combinados por mais de 5 anos apresentaram microbiota tipo L e tiveram risco menor de desenvolver câncer de ovário.
Entretanto, nas mulheres com até 50 anos e com câncer de ovário ou com mutação de BRCA, mesmo sem câncer de ovário, o subtipo mais prevalente foi o subtipo O, com menos de 50% de espécies de lacotacilos.
O trabalho sugere que nas mulheres com câncer de ovário ou que apresentam mutação de BRCA, a disbiose cervicovaginal pode ter implicações na carcinogênese do ovário.
Novos estudos serão fundamentais para confirmar esta hipótese. Por enquanto, fica o questionamento se a intervenção na tentativa de reequilibrar o microbioma cervicovaginal poderá ter impacto na prevenção desta doença tão devastadora.
Referência: Nené NR, Reisel D Leimbach A et al. Association between the cervicovaginal microbiome, BRCA1 mutation status, and risk of ovarian cancer: a case-control study. Lancet Oncol. 2019; (published online July 9.)