Pesquisa publicada na Cancer Discovery revela o papel da epigenética na recorrência do câncer de mama positivo para receptores de estrogênio (ER+), identificando como a terapia hormonal para reduzir o risco de recorrência pode, em alguns casos, desencadear mudanças epigenéticas que alteram o estado de células tumorais, que terminam por “hibernar” para evitar o tratamento e “acordar” anos mais tarde, em uma recidiva difícil de tratar. “Este estudo avança na compreensão da dormência induzida pela terapia, com potenciais implicações clínicas para o câncer de mama”, destacam os autores.
As mudanças epigenéticas alteram a forma como o corpo lê o seu DNA, sem alterar o próprio código do DNA. Pacientes com câncer de mama positivo para receptores de estrogênio (ER+) têm um risco contínuo de recorrência, mesmo décadas após o diagnóstico e cirurgia. Para reduzir o risco, os pacientes são submetidos de cinco a dez anos de terapia endócrina adjuvante.
Neste estudo, financiado pela Cancer Research UK, Luca Magnani e colegas identificaram que alterações específicas nos principais reguladores epigenéticos que controlam a transcrição genética, incluindo a modificação da histona H3 na lisina 9 (H3K9me2), foram responsáveis pelo estado de dormência das células tumorais, até que “acordem” e comecem novamente a dividir-se rapidamente. No entanto, o bloqueio destes reguladores – ao inibir as enzimas G9a que os catalisam – evitou que as células ficassem adormecidas e matou as células cancerígenas que já estavam ‘hibernando’. Em indivíduos com baixa expressão dessas enzimas, o câncer apresentou menor risco de recidiva.
Para desvendar o papel do H3K9me2, os pesquisadores marcaram as células de câncer de mama ER+ com códigos de barras exclusivos e, ao imitar o tratamento de terapia hormonal nas células, observaram que, embora a maioria das células morresse, outras ficavam adormecidas e paravam de proliferar. Usando espectrometria de massa, a equipe descobriu que o tratamento com terapia hormonal desencadeou alterações nas modificações das histonas, incluindo H3K9me2, à medida que as células entravam em dormência.
Na etapa seguinte, inibiram a enzima G9a, que catalisa o H3K9me2. Primeiro, testaram a inibição da G9a em células que tinham acabado de ser tratadas com terapia hormonal e identificaram que a inibição dessa enzima matava as células tumorais e impedia que elas entrassem em dormência. Depois, testaram o bloqueio da G9a em células que já estavam dormentes e identificaram que a inibição do G9a também matava as células cancerígenas dormentes.
“Nossa investigação identificou um mecanismo-chave utilizado pelas células cancerígenas para escapar à terapia”, disse Luca Magnani, professor de plasticidade epigenética do Institute of Cancer Research (ICR), em Londres. “Espero que nossas primeiras descobertas levem a pesquisas destinadas a atingir estas células dormentes do câncer de mama, para que um dia, sem a necessidade de anos de terapia hormonal, os pacientes possam ter a certeza de que seu câncer não irá regressar”, declarou.
Para Kristian Helin, executivo-chefe do ICR, esta investigação contribui para o crescente conjunto de evidências sobre o papel da regulação epigenética no comportamento complexo do câncer. “Sabemos que o câncer se adapta e evolui para fugir do tratamento. Este estudo mostra como células tumorais no câncer de mama RE+ permanecem adormecidas para se esconder do tratamento. Medicamentos direcionados a modificações epigenéticas já estão em desenvolvimento e espero que esta pesquisa abra caminho para novos tratamentos que impeçam a recidiva do câncer de mama”.
O número de sobreviventes do câncer de mama duplicou no Reino Unido nos últimos 50 anos, graças a melhor detecção e rastreio, mas ainda ocorrem mais de 11.000 mortes anualmente por câncer de mama. “Nossa pesquisa tornou cada vez mais claro que as células cancerígenas podem permanecer inativas no corpo por muitos anos antes de serem desencadeadas para despertar, causando a recidiva do câncer. Este estudo usa uma abordagem inovadora para analisar a genética dessas células adormecidas e obter informações importantes sobre os mecanismos que levam à dormência”, destacou Tayyaba Jiwani, da Cancer Research UK.
Embora numa fase inicial, esses achados revelam potenciais novos alvos para o desenvolvimento de tratamentos inovadores que previnam a recorrência do câncer de mama.
Referência: Cancer Discov 2024;14:1–24. doi: 10.1158/2159-8290.CD-23-1161