Maria Inez Gadelha* (foto) participou da I Semana Brasileira de Oncologia, no Rio de Janeiro, em painel promovido pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO). Acompanhe a fala da especialista, que discutiu caminhos e perspectivas para avançar nos cuidados aos pacientes com câncer e lembrou a responsabilidade de todos na garantia de acesso.
“A medicina, como um bem de mercado que se tornou, e a saúde, também vista como um bem de consumo, necessariamente nos obriga a um debate sobre o valor da cirurgia oncológica no SUS. Mas o debate precisa ser livre de preconceitos, porque, infelizmente, vivemos em um País que é preconceituoso quando olha a relação público-privada e todos estão acompanhando a discussão sobre uma abertura maior para a privatização da Saúde no Brasil. Muitas pessoas interpretam como uma possibilidade de perda e não de ganho para a sociedade. Eu, particularmente, acho muito salutar essa discussão, desde que todos tenhamos uma ética que oriente a garantia de acesso. A tecnologia não pode vir como um impedimento ao acesso, mas por outro lado incorporar a tecnologia nova nem sempre significa oferecer o melhor. É sabido que 80% das tecnologias disponíveis no mundo estão acessíveis apenas para 20% da população. Então, é preciso muita responsabilidade e muita ética nesse sentido.
Quando me envolvi na organização do SUS, eu estava no Instituto Nacional de Câncer. Em 1993, foi feita a primeira orientação pós- INAMPS para o Sistema Único de Saúde na área da oncologia. Foi criada uma Portaria e acho que aí está a dificuldade estrutural que permanece até hoje. A Portaria 170, do Ministério da Saúde, criou a cirurgia oncológica atrelada exclusivamente ao hospital. Com isso, separou a cirurgia oncológica como sendo responsabilidade exclusivamente hospitalar, enquanto a radioterapia e a quimioterapia ficaram estabelecidas como atividades ambulatoriais. Isso é importantíssimo do ponto de vista da estruturação dos serviços e leva a um sistema dissolvido, pulverizado, porque sabemos que, se não juntarmos químio, rádio e cirurgia, não vamos ter resultados.
Outra discussão que ainda é muito presente é a divisão entre cirurgia oncológica e cirurgia de câncer. Por muito tempo, diversos cirurgiões se queixavam da diferença de remuneração que havia para o mesmo procedimento dentro do SUS. Era a velha história da média complexidade e da alta complexidade. Quando eu operava no hospital A eu tinha uma remuneração, mas se operava no hospital B a remuneração era outra, para o mesmo ato operatório. Nunca ninguém percebia que lá na média complexidade havia uma compatibilização daquele procedimento principal com procedimentos sequenciais, enquanto a tabela da cirurgia oncológica da alta complexidade simplesmente não havia compatibilidades e eles não podiam incluir outros procedimentos correlatos.
Foi assim de 1993 até 2008, quando houve a unificação dos procedimentos de tabela. Até então, o SUS tinha duas tabelas, uma para ambulatório, outra para internação. Houve a fusão em 2008 e a partir de 2012, com grande ajuda da própria Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, foi feita a atualização e publicada a Portaria 2.947 do Ministério da Saúde, que já foi atualizada e permanece ainda hoje como referência para a cirurgia oncológica. Essa linha do tempo é necessária para contextualizar a política de assistência oncológica. Se vocês analisarem a neurocirurgia, a cirurgia cardíaca, a cirurgia torácica ou qualquer outra área de especialidade, verão que nenhuma tem o conceito oncológico embutido nos procedimentos da tabela do SUS. Mas, na oncologia, esse conceito é norteador da nossa prática diária. A partir do estadiamento do câncer, do estágio em que a doença se encontra, é que nós definimos normas sistematizadas que, evidentemente, são individualizadas para cada situação, considerando a necessidade do doente em termos de tratamento. Essa tabela do SUS unificada conseguiu resumir a oito grupos toda a atuação procedimental no atendimento, seja do doente ou da população.
Quando nós falamos em oncologia, temos de considerar dois grupos, os procedimentos clínicos e os procedimentos cirúrgicos. E, quando falamos em câncer, nós temos de lembrar da prevenção, da promoção da saúde, do diagnóstico, enfim, não podemos confundir o câncer com a oncologia. É por isso que temos de perseguir a integração, porque precisamos pensar na perspectiva da integralidade da assistência. A cirurgia é um ato único, mas não isolada; ela faz parte de uma indicação terapêutica. A indicação é muito mais importante do que a execução, o que não retira, evidentemente, a importância da qualidade da execução. A cirurgia oncológica é relativamente mais ofertada pela saúde suplementar que pelo SUS, porque é ato único, fácil de gerenciar, fácil de oferecer. No entanto, a radioterapia está um pouco além, porque agrega um altíssimo custo, mas ainda assim tem duração menor, relativamente, comparada à quimioterapia. À medida que aumenta a duração do tratamento e o custo também cresce, a oferta na saúde suplementar diminui e ela começa a exigir dos serviços que sejam credenciados do SUS. Assim, internamente, o doente é atendido por uma equipe só, não percebe diferença alguma, mas nos bastidores da assistência o financiamento tem portas diferentes. Essa prática tem um impacto tremendo para o SUS, principalmente na quimioterapia, porque, além do alto custo, tem altíssima duração. A permanência média de um doente em quimioterapia no SUS é em torno de 6 anos, a taxa de acumulação anual chega a aproximadamente 8%. É a menor cobertura na saúde suplementar. Quando se analisam os contratos, você vê que existe maior cobertura de cirurgia na saúde suplementar do que de radioterapia ou quimioterapia. É muito importante que se perceba isso, porque só vamos ofertar uma integralidade assistencial pela integração desses serviços. Temos de juntar essas pontas. A tabela do SUS se organiza a partir dessa visão. Na realidade, temos uma distribuição por especialização. Em 1999, quando se começou realmente a estruturar a oncologia no SUS, tínhamos uma tabela que era basicamente a continuidade da do INAMPS. Então, de 87 milhões de reais em 1999, chegamos a 172 milhões aplicados na cirurgia oncológica em 2012. Com a mudança da Portaria 2.947, em 2012, o acúmulo de procedimentos sequenciais e a compatibilidade de OPME (Órteses, Próteses e Materiais Especiais), em 2016 o total da cirurgia chegou a mais de 860 milhões de reais.
É importante chamar a atenção que aqui não estão computados procedimentos cirúrgicos na neurocirurgia e na oftalmologia, assim como não estão computados muitos procedimentos que acontecem na ortopedia, que chegam a quase 42 milhões. Também não estão computados procedimentos cirúrgicos que não são do grupo 04.16 (específicos da Cirurgia Oncológica), mas que também tratam câncer e chegam a quase 605 milhões de reais. Então, quando os procedimentos cirúrgicos de câncer são vistos em conjunto, a soma chega a 1 bilhão e 470 milhões de reais. Com a quimioterapia, o gasto do SUS no mesmo ano é de 1 bilhão e 800 milhões, ou seja, a diferença não é tão grande.
Por fim, é preciso dizer que acompanhamos os indicadores da oncologia e sabemos que o doente é mais bem tratado em hospital habilitado em oncologia, mas vai ser impossível dizer que todo paciente de câncer tem de ser operado em hospital habilitado. Nós vamos fechar acesso se aceitar essa obrigatoriedade. O importante é garantir a integralidade assistencial pela integração dos serviços cirúrgicos, radioterápicos, quimioterápicos e de suporte terapêutico em oncologia.
*Maria Inez Pordeus Gadelha é médica pela Universidade Federal da Paraíba, com residência médica em Oncologia Clínica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, é Chefe de Gabinete da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde (SAS/MS).