Como uma tecnologia como a terapia por feixe de prótons se expandiu tanto na oncologia em contraste com a tímida base de evidências? A indagação motivou editorial da British Journal of Cancer e põe em contexto especialmente o cenário norte-americano, que em 2018 viveu forte expansão, com a abertura de pelo menos 27 novos centros, e hoje amarga retração importante, com mais de um terço dessas unidades com sérios problemas financeiros. Quem comenta é o radio-oncologista Bernardo Salvajoli (foto), médico do serviço de radioterapia do HCOR-Onco e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
Segundo o editorial da BMJ, como a base de evidências não acompanhou a expansão dos centros, fontes pagadoras passaram a recusar a cobertura, à espera de dados mais sólidos. Some-se a isso a emergência de novas tecnologias, como a radioterapia tridimensional, e o tímido interesse de pesquisadores americanos por estudos randomizados, que ficaram abaixo das expectativas. “A bolha de prótons nos EUA não explodirá, mas se esvaziará”, projeta o editorial da BJC. “Apesar das agressivas campanhas de marketing dirigidas para os pacientes e do lobby para alterar as regras de pagamento, a terapia de prótons não é mais uma estratégia de investimento seguro”, sinalizam.
E enquanto os EUA assistem à crise da terapia por feixe de prótons, o Reino Unido se prepara para ampliar as pesquisas nesse campo e avançar na adoção da tecnologia. “Graças ao seu sistema de saúde financiado centralmente, o Reino Unido optou por introduzir a terapia de prótons após uma avaliação nacional. A comissão determinou que uma instalação importante em Manchester e outra em Londres devem atender às necessidades do país, com base em evidências e indicações atuais (principalmente cânceres pediátricos, sarcomas e tumores do sistema nervoso central)”, diz o BJC. Com uma robusta infraestrutura de pesquisa, o Reino Unido também vai realizar os estudos randomizados que até hoje não foram feitos, concorrendo para reforçar a base de evidências.
Uso adequado da terapia por feixe de prótons
Por Bernardo Salvajoli
Apesar da recente implementação do uso de prótons no tratamento radioterápico, sua história já tem quase I século desde sua descoberta. Em 1919, o cientista ganhador do prêmio Nobel em 1908, Ernest Rutherford, demonstrou a existência do próton. Sua experiência clínica inicial oncológica é datada da década de 1950 e a tecnologia vem evoluindo bastante nas últimas décadas.
Quando falamos em prótons, trata-se de uma outra forma de entregar radiação ionizante aos tecidos, sendo gerada de um núcleo atômico instável. Na prática, do ponto de vista físico, a vantagem desse tipo de irradiação é a capacidade de não atingir tecidos além do seu alvo, ou seja, as doses altas e baixas não se espalham além da área que é irradiada.
Ao se comparar um plano de tratamento de prótons com o de fótons (radioterapia tradicional), é visível e numérico a vantagem desse tipo de tratamento, reduzindo drasticamente doses baixas espalhadas aos tecidos adjacentes. Sendo assim, por que o artigo acima diz que se começa a reduzir a “bolha” de prótons nos Estados Unidos?
O fato de ser numericamente melhor não se traduz em melhores resultados clínicos. Além disso, como cita o editorial, ainda faltam estudos com nível I de evidência para justificar o uso constante desse tipo de máquina.
Mas se numericamente é tão melhor, por que não utilizamos esse tipo de maquinário se ao menos é equivalente? Uma máquina de prótons custa no mínimo 10 vezes um acelerador linear de ponta (mais de 20 milhões de dólares os modelos de entrada), sem contar um custo operacional enorme, com manutenções caríssimas e pessoal especializado.
Nos Estados Unidos, a utilização da tecnologia começou a elevar os custos dos tratamentos de forma brutal, sem justificativa clínica razoável para isso. Através de marketing, muitos pacientes preferem tecnologias avançadas, mas não entendem que para saúde pública e suplementar essa conta não fecha. No Brasil, essa realidade é ainda muito mais distante, visto que nosso câmbio é desvalorizado, temos impostos exorbitantes para importação dessas máquinas além de falta de mão de obra especializada.
No entanto, existem nichos com benefícios comprovados com o uso de prótons. Em irradiações pediátricas, principalmente de neuro-eixo, é nítida a diferença de toxicidades agudas e tardias, além de menos risco de segundas neoplasias. Outro foco bem utilizado é reirradiações, onde se tenta minimizar áreas já irradiadas, e sua aplicabilidade tem sido de muita ajuda nesse cenário.
Porém, o que aumenta a utilização são os tratamentos sem nenhum benefício comprovado, como próstata e mama, que pelo volume acabam pagando a conta do alavanque comercial gerado em volta dessa tecnologia. É disso que o artigo trata como a “bolha” dos prótons, e que deve realmente diminuir nos próximos anos.
No Brasil, seria de muita valia ao menos uma ou poucas máquinas para essas situações especificas, mas para não gerar o apelo comercial e tratamentos desnecessários, Os melhores modelos estudados deveriam ser de coparticipações de entidades privadas/filantrópicas ou até mesmo público-privadas, diluindo os custos e aumentando os casos com real necessidade. Não temos perspectivas nesse cenário, mas acredito que teremos alguma máquina nas próximas décadas. Além disso, novas tecnologias já estão surgindo, como íons pesados de carbono, que além da vantagem dos prótons conseguem depositar mais energia nos tecidos, e talvez obter melhores resultados clínicos no futuro.
Referências: British Journal of Cancervolume 120, pages775–776 (2019)