O tratamento do mieloma múltiplo mudou significativamente nos últimos anos, proporcionando mais opções e aumentando a complexidade da escolha terapêutica. Para orientar na incorporação de novos tratamentos, tanto no cenário da doença recém-diagnosticada como na doença recidivada/refratária, a ASCO e o Cancer Care Ontario publicaram um guideline com recomendações para pacientes elegíveis para transplante, não elegíveis e para aqueles com doença recidivada ou refratária. “O guideline é bastante abrangente, mas esse é um cenário que deve mudar em breve, o que é excelente, pois significa que temos perspectivas muito favoráveis”, afirma Ângelo Maiolino (foto), professor de hematologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador de hematologia do Americas Centro de Oncologia Integrado, no Rio de Janeiro.
O Painel de Especialistas realizou uma pesquisa na literatura que incluiu revisões sistemáticas, metanálises, ensaios clínicos randomizados e alguns estudos de fase II publicados entre 2005 a 2018. A pesquisa bibliográfica identificou 124 estudos relevantes para informar a base de evidências da diretriz.
População elegível para transplante
O guideline recomenda que os pacientes elegíveis ao transplante autólogo de células-tronco (ASCT) sejam encaminhados a um centro de transplante para determinar a elegibilidade ao procedimento. A idade cronológica e a função renal não devem ser os únicos critérios utilizados para determinar a elegibilidade.
O Painel de Especialistas observa que o regime ideal e o número de ciclos permanecem sem comprovação. No entanto, pelo menos três a quatro ciclos de terapia de indução incluindo um medicamento imunomodulador, um inibidor de proteassoma (PI) e esteroides são aconselhados antes da coleta de células-tronco.
O transplante up-front deve ser oferecido a todos os pacientes elegíveis para transplante, e o ASCT inicial tardio pode ser considerado em pacientes selecionados. Agentes associados à toxicidade de células-tronco, como melfalano e/ou exposição prolongada a medicamentos imunomoduladores (mais de quatro ciclos), devem ser evitados em pacientes potencialmente candidatos ao transplante.
“As diretrizes consolidam o transplante como terapia inicial nos pacientes elegíveis, mas esse também é um cenário em mutação, e possivelmente nas próximas atualizações o transplante inicial vai perder um pouco de protagonismo. Com a inclusão dos esquemas com quatro doses, possivelmente alguns pacientes que alcancem doença residual mínima negativa poderão não fazer o transplante como tratamento inicial”, explica Maiolino.
O guideline recomenda ainda que a terapia de manutenção com lenalidomida seja oferecida rotineiramente a pacientes com risco padrão, iniciando-se aproximadamente no dia 90 a 110 com 10 a 15mg/dia até a progressão. “Um mínimo de 2 anos de terapia de manutenção está associado à melhora da sobrevida e deve-se esforçar para manter a terapia por pelo menos esse período. Para pacientes intolerantes ou incapazes de receber lenalidomida, a manutenção com bortezomibe a cada 2 semanas pode ser considerada. Já para pacientes de alto risco, a terapia de manutenção com um inibidor de proteassoma, com ou sem lenalidomida, pode ser considerada”, diz o documento.
População Inelegível ao Transplante
As recomendações iniciais de tratamento para pacientes com mieloma múltiplo que são inelegíveis ao transplante devem ser individualizadas, baseadas na decisão compartilhada entre médicos e pacientes. Vários aspectos devem ser considerados: fatores específicos da doença, como estádio e anormalidades citogenéticas, e fatores específicos do paciente, como idade, comorbidades, status funcional, status de fragilidade e preferências do paciente.
O tratamento inicial deve incluir pelo menos um novo agente (droga imunomoduladora ou inibidor de proteassoma) e um esteroide, se possível. A terapia tripla, incluindo bortezomibe, lenalidomida e dexametasona, deve ser considerada. Daratumumabe mais bortezomibe mais melfalano e prednisona também podem ser considerados.
“O cenário dos pacientes não elegíveis ao transplante está mudando rapidamente, com esquemas um pouco mais intensos e contínuos. Nesse guideline temos a temos a inclusão na primeira linha do esquema do estudo ALCYONE, que avaliou o anticorpo monoclonal anti-CD38 daratumumabe + bortezomibe, melfalano e predisinona (VMP), seguido de manutenção com daratumumabe até a progressão”, afirma Maiolino.
O especialista observa que outras combinações não foram incluídas nas diretrizes porque os estudos ainda não foram publicados. “Exemplo disso é o estudo MAIA, apresentado na última ASH, que avaliou daratumumabe associado à terapia padrão com lenalidomida e dexametasona (Rd), e mostrou resultados impactantes, com um percentual de mais de 20% dos pacientes com doença residual mínima negativa; ou daratumumabe + bortezomibe, lenalidomida e dexametasona (VRd), avaliado em estudo ainda em andamento”, diz.
O guideline também recomenda a avaliação da qualidade de vida (incluindo o manejo dos sintomas e a tolerabilidade ao tratamento) a cada visita para determinar se os objetivos da terapia estão sendo mantidos/atendidos. Essa informação deve influenciar a intensidade e a duração do tratamento. “Recomenda-se que os pacientes sejam monitorados rigorosamente levando em consideração as modificações de dose com base nos níveis de toxicidade, neutropenia, febre/infecção, tolerabilidade aos efeitos adversos, performance status, função hepática e renal”, afirma a diretriz.
Doença Recidivada
O tratamento do mieloma recidivado bioquimicamente deve ser individualizado. Os fatores a serem considerados incluem tolerância do paciente ao tratamento anterior, taxa de elevação dos marcadores de mieloma, risco citogenético, presença de comorbidades (por exemplo, insuficiência renal), fragilidade e preferência do paciente. Pacientes de alto risco, definidos por citogenética de alto risco e recidiva precoce pós-transplante/terapia inicial, devem ser tratados imediatamente. A vigilância ativa é apropriada para pacientes com recidiva de progressão lenta e assintomática.
Segundo as diretrizes, todos os pacientes clinicamente recidivados sintomáticos devem ser tratados imediatamente. “A terapia tripla deve ser administrada na primeira recidiva, embora a tolerância do paciente para aumentar a toxicidade deva ser considerada. Um trio é definido como um regime com dois novos agentes (IPs, drogas imunomoduladoras ou anticorpos monoclonais)”, esclarece o documento.
Terapias prévias devem ser levadas em consideração ao selecionar o tratamento na primeira recidiva. Um regime baseado em anticorpos monoclonais em combinação com um medicamento imunomodulador e/ou IP deve ser considerado. Os regimes triplos são preferidos com base na tolerabilidade e comorbidades.
Em relação ao risco, todos os pacientes devem ser avaliados utilizando o Revised International Staging System no momento do diagnóstico. A avaliação repetida de risco no momento da recidiva deve ser realizada e incluir medula óssea com hibridização fluorescente in situ (FISH) para anormalidades do mieloma observadas com progressão, incluindo anormalidades 17p e 1q. “A avaliação de outros fatores de risco, como insuficiência renal, idade, presença de leucemia de células plasmáticas/ plasmócitos circulantes, doença extramedular e fragilidade também deve ser considerada/realizada”, orientam os especialistas.
Em pacientes com doença genética de alto risco, uma combinação tripla de IP, droga imunomoduladora e um esteroide deve ser o tratamento inicial, seguido por um ou dois ASCTs, e por uma manutenção baseada em PI até a progressão.
Os critérios de resposta revisados do IMWG devem ser usados para avaliação da resposta. “A avaliação da resposta deve ser realizada após um ciclo de terapia, e uma vez observada uma tendência de resposta, pode ser feita em todos os outros ciclos, com menos frequência quando o paciente atinge um platô”.
“O guideline é sempre mais conservador, utiliza dados que estão estabelecidos. , mas tb aí na avaliação de resposta, Nós utilizamos a avaliação de resposta do IMWG, que está consolidada. No entanto, em breve vamos ver a inclusão da avaliação de doença residual mínima utilizando as técnicas mais modernas de sequenciamento e citometria. Já é uma realidade, todos os estudos recentes em mieloma incluem a avaliação de doença residual mínima, e em breve isso será transportado para a prática clínica”, diz Maiolino.
O especialista acrescenta que apesar de novos tratamentos terem sido aprovados no Brasil, ainda existe uma defasagem na incorporação, tanto no cenário público como no ambiente privado. “É inconcebível não ter uma diretriz de utilização para lenalidomida, por exemplo, e tampouco ter a incorporação de lenalidomida, bortezomibe, daratumumabe, que eu considero bases do tratamento do mieloma. As aprovações foram feitas, esse é um passo importante. Mas ainda temos muito o que avançar”, conclui.
A íntegra do guideline está disponível em www.asco.org/hematologic-malignancies-guidelines.
Referência: Treatment of Multiple Myeloma: ASCO and CCO Joint Clinical Practice Guideline - DOI: 10.1200/JCO.18.02096 Journal of Clinical Oncology - Published online April 01, 2019